Artigo: No meio do caminho da educação, tem uma pedra - Por João Augusto Bandeira de Mello

02/03/2024 08:58


Artigo: No meio do caminho da educação, tem uma pedra - Por João Augusto Bandeira de Mello

Nosso maravilhoso Carlos Drummond de Andrade nos premiou com inesquecíveis poemas que, com sua doçura, simplicidade e humanidade, incorporaram-se a nossas vidas e nossas reflexões cotidianas, de uma forma tão presente, que parece que seus versos clamam e falam diretamente de nossos suspiros, indagações e angústias.

Gosto muito, por exemplo, do famosíssimo Poema “No meio do Caminho” onde o poeta retrata que “no meio do caminho tinha uma pedra”, “uma pedra no meio do caminho”, e que nunca esquecerá desse acontecimento na vida de suas retinas tão fatigadas. Que acontecimento? Que no meio do caminho, sempre há uma pedra... (Ele dá o sentido de caminhada e repetição, desenvolvendo o poema, quase como Sísifo do mito grego, escrevendo e reescrevendo o mantra: tinha uma pedra, no meio do caminho tinha uma pedra...)

Muitos vão dizer que o poema reverbera pessimismo e cansaço, ou seja, um retrato aflito e negativo sobre a longevidade e a luta pela vida (tendo-se que matar um leão a cada dia). É uma leitura. E respeitável. (E uma coisa que aprendi, é que o texto se liberta do autor no momento em que é escrito, e que a partir daí, não interessa mais a intenção de quem escreve, dos críticos, dos sábios, etc. O que importará, do momento da leitura por diante, é a transformação que aquele texto operará na vida do leitor, em suas ações e reflexões, a partir de sua compreensão.)

Penso que Drummond não faz uma reclamação, um mero desabafo ou uma admoestação da aridez do dia-a-dia, mas sim uma brilhante e filosófica constatação de que a vida não se aperfeiçoa na chegada; ela se cumpre, enriquece, se desenvolve e evolui na caminhada. São nossos objetivos, conquistas e vitórias que nos impelem e nos levam adiante, com sentimento de sentido e propósito.

Neste passo, nossas superações e triunfos serão sempre superações e triunfos sobre pedras que a vida nos colocou no meio do caminho. E cada vez que conseguimos contornar, escalar ou chutar cada uma destas pedras, vamos colocando paralelepípedos vencedores em nossas estradas da existência. E não tenham dúvidas de que, quando as pedras pararem de surgir, pode ser exatamente o sinal de que a missão da caminhada está perto do fim...

Sendo certo que, nós, humanos, somos contadores de histórias/estórias por excelência; e são estas histórias/estórias que nos impulsionam para o dia seguinte, a partir de nossos sentimentos de justiça, gratidão, reconhecimento... E sem as pedras, as dificuldades da vida, nossas vitórias/histórias não existiriam, não haveria legado a deixar...

Teríamos começado e terminado do mesmo modo, vivendo aquilo que meu saudoso e querido Pai, poeta Francisco Bandeira de Mello, alertou e chamou de “Tédio dos Dias”; que se dá quando o dia e noite se sucedem numa dualidade invariável, sem escapatórias, sem nenhuma mudança que marque o construir da existência, sem momento gratificante de sentido/vitória/superação no meio de nosso caminho. (O monótono mais do mesmo, mesmo opulento, gera angústia e depressão).

Neste ponto, a leitora atenta e o leitor atento já devem estar se perguntando o que tudo o que foi discutido até aqui, tem relação com as pedras da educação e com o seu processo de melhoria e evolução. Ouso dizer que tudo, pois tem absoluta conexão com a essência do processo educacional, que é a efetiva aprendizagem e desenvolvimento pessoal e intelectual do educando.

Tudo porque educar/aprender/conhecer/refletir é exatamente o oposto de permanecer onde está (paralisado pela ou como a pedra). Educar é movimento, é soma, é mudança. É transformar horizontes, percepções, pontos-de-vista. É a contínua reelaboração do mundo que se apresenta, em função do que se viu, conheceu, aprendeu.

Não é apenas encontrar uma pedra, mas buscá-la, procurar conhecê-la. É estar com a pedra, vivenciá-la, medir sua natureza e horizontes, e superá-la, buscando outras pedras (e outras mais, e mais outras), outros obstáculos cognitivos, que serão domados no desencadear da jornada educativa.

E aí é que está, em minha modesta opinião, o cerne da questão e talvez um dos grandes vértices do problema educacional. Tudo porque, se educação é mudança, é avanço, é superação humana; ela não pode ser medida e avaliada em uma perspectiva contábil ou bancária, pegando carona na metáfora de Paulo Freire. Não pode ser contada como mera soma de insumos materiais ou de cumprimento de checklists desvinculados do crescimento humano.

Ora, é claro que o processo educacional precisa de transporte organizado, de escola digna, de sala-de-aula estruturada, de professor capacitado, de aula planejada, de merenda de qualidade, de gestão eficiente, de profissionais competentes, de participação da família, da fiscalização dos Conselhos de Educação e tutelares, participação da assistência social, da integração com a intersetorialidade com a saúde, do apoio da sociedade, e da harmonia de todos estes aspectos.

Mas (e há sempre um mas no meio do caminho, que deve ser ultrapassado com uma solução), mesmo com todo este checklist funcionando, ainda assim, não se garante o sucesso da jornada escolar. Pode estar tudo ticado (inclusive com marca-texto colorido), e simplesmente o aluno estar parado, incapaz de avançar na aprendizagem, hipnotizado pela pedra que lhe atravanca o caminho. (Seja a pedra da alfabetização, da leitura, dos mistérios dos textos, dos arranjos matemáticos, do progresso científico, do que aconteceu na história, ou das pedras magmáticas dos locais ermos da geografia).

Pior, muitas vezes o aluno não consegue avançar, não consegue aprender, e isto é aceito, normalizado, correspondido. Em muitos casos, age-se como se o processo educacional fosse um vaticínio, algo meio aleatório ou mágico em que alguns serão sorteados com a bênção da aprendizagem e outros não. E que a única providência a tomar para os não-escolhidos, seria o manejo do carimbo da reprovação.

Sabemos que não é assim, ou que, pelo menos, pode não ser assim. Todos alunos têm a capacidade de conseguir suas vitórias (sendo certo que a vitória de um, não é a mesma vitória do outro); mas todos precisam de impulso pessoal e coletivo. Pessoal, na inspiração de sua chama interior de construir de etapa em etapa, em termos de conhecimento, o seu processo de cidadania do mundo.

E coletivo, pois se o desafio parecer complexo, se a pedra for difícil de ser escalada; que haja professores, diretores, coordenadores, secretários, colegas, pais, sociedade, governo, conselhos, para dar a mão ao estudante e ampará-lo neste caminho. É necessária vontade pessoal, mas também uma vontade coletiva de resultado. Vontade esta que não é favor, não é caridade, não é boa ação. É dever ético universal humano onde ninguém pode soltar a mão de ninguém neste procedimento infinito de aprendizado de todos e de cada um.

É muito conhecido o provérbio africano de que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”. Palavras de infinita sabedoria, pois revelam o esforço de mobilização coletiva necessária para que o processo educacional dê certo. Como disse, família, escola, poder público, toda a sociedade (toda a aldeia), todos têm que estar na mesma página, alerta e alinhados para o resultado educacional. Uns ajudando os outros, uns cobrando dos outros, uns substituindo os outros, quando eventualmente algum dos elos da corrente faltar.

Todos repartindo a mesma visão de futuro, todos vivenciando o mesmo projeto humano de experiência de vida – experiência esta ontologicamente coletiva. Todos e cada um experimentando o que é mais próprio da humanidade, que é fazer o coletivo evoluir coletivamente. Com todos a partilhar conhecimentos e ensinamentos, a comungar, ideias, reflexões e momentos. Todos enxergando o próximo, como o próximo que vai lhe ajudar ou necessitar de ajuda. E não fazer diferença se o caso é um ou outro...

Nestes últimos dias, terminei de ler o magnífico livro de caráter autobiográfico da extraordinária Maya Angelou: “Eu sei porque o pássaro canta na gaiola”. Um livro admirável já no título, que demonstra a força da esperança no seguir adiante, não porque, mas quase sempre apesar de...  Um livro terno e humano, desenhado na resiliência da vocação da pessoa de estar sempre em busca de seu inarredável direito de ser....  Uma obra sobre a realidade da vida em que a autora revela como podem ser cruéis as relações humanas e todas as pedras duríssimas que ela enfrentou em sua caminhada.

Não vou contar o livro. Não cometerei o pecado do spoiler. Mas deixo uma lição trazida pela mãe de Maya, Vivian, sobre a busca dos sonhos e objetivos (e vale para a construção coletiva do que é devido): “Não consigo é como não ligo. Nenhum dos dois vale nada”.

Tudo porque entendo que o fracasso educacional que ainda vivemos (falo do geral e não das exceções), é um misto de certa letargia coletiva (que aos poucos está acordando) de achar que não podemos superar os problemas da educação; associado a um geral entendimento (que graças a Deus está também mudando) de que podemos viver do mesmo modo, repetindo modelos e fracassos.

 Ficamos muito tempo fascinados pelo brilho da pedra, sem nos aperceber que está no horizonte (muito além da pedra), nossa vocação natural de caminhar, e de nos reconhecer como pessoas trocando experiências no meio do caminho. (E se repartirmos conhecimentos e vivências, as pedras diminuem, chegam momentos que nem mais as sentimos...) Por isso, é hora de mudar. É hora de ligar. É hora de conseguir. (E de vencer a pedra e comemorar...)

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