Artigo: Como é perversa a juventude do meu coração

14/11/2020 18:27

Luiz Eduardo Oliva (*)


Artigo: Como é perversa a juventude do meu coração

Uma das frases mais emblemáticas da MPB e ao mesmo tempo profética e longeva veio da voz do bardo cearense Belchior que em uma velha canção dizia: “nossos ídolo ainda são os mesmo e as aparências não enganam não...” Belchior,  ele mesmo que viria a ser um dos nossos maiores ídolos morreu há três anos e fosse vivo teria feito 74 anos no dia 26 de outubro passado. 

Este ano de 2020 é emblemático porque muitos dos nossos ídolos que ainda eram os mesmos estão se indo. Seja  pela Covid ou por outras doenças a verdade é que nunca em um só ano a cultura ficou tão pobre. No domingo que passou morreu no ostracismo Vanusa, uma das mais importantes cantoras do século que passou. Foi ela praticamente quem pela primeira vez destacou a figura de Belchior como compositor ao gravar em 1975 a canção “Paralelas”. A morte melancólica de Vanusa com repercussão aquém do seu talento é um sinal dos tempos. 

Ligados às plataformas digitais perdemos os discos e com eles os encartes, primorosos em artes gráficas, nos davam a letra das músicas e a ficha técnica valorizando quem estava por trás das canções e das gravações.  Foram os discos, nos anos 70 do século XX o principal instrumento para se formar consciências, tomar atitudes, dizer as coisas e mexer com corações e mentes, enfim, o grande condutor da cultura daqueles tempos.   Sou da geração do vinil, da juventude que esperava os LPs para se deleitar com os encartes muito bem trabalhados e escutar, muito mais que simplesmente ouvir. Era a partir dos discos que mudavam os comportamentos e se enfrentava velhos tabus do conservadorismo moralista e decrépito como sói acontecer nos dias atuais. 

Escutar discos não era o ouvir de hoje onde o dizer das letras soa como uma realidade sem sentido nem metáforas, pontuando talvez uma alucinação coletiva onde o escutar faz muito pouco sentido.  Quando em 1976 Belchior lançou “Alucinação” sua música e poesia soaram como algo inusitado ao que se ouvia. Nem era o “divino e maravilhoso” da Tropicália, tampouco o necessário “canto de protesto” onde a figura maior era Chico Buarque.   Belchior chegou dizendo “eu quero é que esse canto torto feito faca, corte a carne de vocês”. 

Vendo o mundo de hoje onde a mediocridade triunfa, a vilania assume um papel quase natural e pessoas nem se preocupam com a verdade,  senão a  fazer valer a pós verdade em que é a versão prevalece acima do fato e  onde as fake news imperam como verdades absolutas. Belchior, que teve em Vanusa sua primeira grande intérprete (Elis Regina seria a maior delas) está mais vivo do que nunca, no que nos alertou, por isso “cuidado, meu bem, há perigo na esquina”, nos gabinetes palacianos, muito mais que nos becos das ruas... Parece que de nada adiantou o pós-guerra e as feridas da humanidade se ainda não se aprendeu as lições que os nossos pais viveram. Não sem razão Belchior advertiu: “minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais...”.

No final dos anos 60 e início dos anos 70 o mundo vivia em tremendo rebuliço.  Na Europa, dois anos antes os estudantes armaram as famosas barricadas de Paris, fazendo explodir nas ruas uma contestação que ia para além do mero protesto contra o governo do General De Gaulle.  No ano seguinte na cidade de Bethel, no estado de Nova York nos Estados Unidos o Festival de Woodstock foi a mais completa tradução da contracultura e o evento símbolo da geração hippie. O rock and rol, uma invenção dos anos 50 explodiram e os Beatles e os Rollings Stones eram como ainda hoje são amados.   

Ao contestar o próprio mundo, buscavam-se novos valores sociais e políticos, fazendo daqueles anos um dos períodos mais ricos da história recente.  Talvez o pós-guerra tivesse deixado a humanidade perplexa onde havia uma indagação sobre a própria existência. Afinal a segunda grande guerra contabilizou a absurda cifra de 60 milhões de mortes e 40 milhões de desabrigados pela insanidade do nazi-fascismo. O que era, afinal de contas, o existir?  Não sem razão a própria filosofia existencialista, na figura exponencial de Jean Paul Sartre foi uma marca daqueles anos. Havia de fato, como certamente há hoje, uma sensação de desorientação e confusão em face de um mundo aparentemente sem sentido e absurdo. 

A geração dos anos 70 dizia que queria um mundo diferente, onde viver não fosse somente estar vivo.  Embora fosse o grande cronista do seu tempo, denunciando um mundo alucinado e sem sentido, Belchior dizia não querer dizer das coisas que aprendeu nos discos. Por contradição ou ironia foi nos discos ele nos  ensinou. Ao falar do seu disco Alucinação disse: “Viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto".E também cantou: “Viver é melhor que sonhar”. Talvez ali Belchior tivesse querendo contrapor ao sonho lusitano de Fernando Pessoa para quem “viver não (era) preciso, navegar é preciso”.

Volto à Vanusa para lembrar que a obra de Belchior ainda ressoa atual, necessária e precisa. Em dias de tanta desesperança e descrença advertir já diz muito, é uma forma de ensinar.  Não, não é para se estar “interessado em nenhuma teoria”. “Suportar o dia a dia já é razoável”.  Se em 1976 havia “humilhados nos parques dormindo em folhas de jornais”,  os direitos humanos continuam incompreendidos. E o “sinal ainda está fechado para nós”     que já nem somos tão jovens.  Mas atenção, “não se deve cantar vitória muito cedo não que as lágrimas dos jovens são fortes como um segredo...” Tudo poderia ter mudado, mas “nossa esperança de jovens (ainda)  não aconteceu”.  No entanto, “longe de mim o profeta do terror”, apesar dos pesares, de tudo o que se está vivendo. Se viver não é preciso, como disse Fernando Pessoa, acreditar é preciso. E “amar e mudar as coisas interessa muito mais”. Triste e emblemáticos  tempos esses nossos. Dele poderá surgir uma nova mentalidade porque a esperança corre “paralela” a tudo que estamos assistindo. Olho para trás e ouço o verso daquela canção de Belchior que ficou consagrada na voz de Vanusa: “como é perversa a juventude do meu coração”. 

() *Luiz Eduardo Oliva é professor, advogado, poeta e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas. 

 

Compartilhe

Veja Também

Receba Notícias Pelo WhatsApp