Artigo: O Gambito da Rainha, e as lições do jogo de xadrez para a vacinação de prevenção à COVID-19

18/12/2020 19:38

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: O Gambito da Rainha, e as lições do jogo de xadrez para a vacinação de prevenção à COVID-19

Sou de uma geração que cresceu sem conviver com múltiplas opções. Televisão, era uma única dentro de casa, para sintonizar três canais: Globo, Bandeirantes e SBT. Restaurantes eram de comida italiana, chinesa ou de churrasco. Apesar de que ir a um restaurante era um acontecimento (assim como viajar), de modo que as refeições eram preferencialmente feitas em casa (voltamos a este hábito em tempos de pandemia). E quando minha mãe perguntava se eu queria jantar, e eu retrucava indagando quais eram as opções, ela respondia assertivamente: - duas, sim ou não.

A multiplicidade de opções hoje em dia, chega a ser paralisante. Um simples café pode ser cappuccino, expresso, coado, com ou sem leite, com ou sem açúcar, cafeinado ou descafeinado, pequeno, médio ou grande e assim por diante, com as possibilidades se sobrepondo, sem falar nos grãos e preparos especiais. E o ato de escolher algo para assistir na TV, notadamente em plataformas de streaming pode levar mais tempo do que a duração do programa em si. (Quem nunca se sentou em frente ao Netflix e ficou zapeando as opções por longos momentos, e acabou ficando sem nada assistir...)

Por isso, a importância das dicas (fica a dica: peça dicas), seja do próprio algoritmo, que se arvora a querer nos conhecer mais do que nós mesmos (mas isso é um tema para um outro artigo); seja de críticos e resenhas (de quem nunca saberemos se assistiram mesmo ou não os filmes e séries); seja de pessoas conhecidas e de nossa confiança - o que se revela a melhor dica, pois se conhecemos o gosto e o grau de exigência da pessoa, temos uma ideia mais apurada se concordaremos com a avaliação, e se realmente o programa televisivo será proveitoso em termos de divertimento.

Por esses motivos, achei interessante trazer uma sugestão de série para os leitores e leitoras desta coluna. Uma série que eu apreciei bastante e que tem feito enorme sucesso: o Gambito da Rainha da Netflix. Mas, porque será que tal seriado tem feito tanto sucesso? Entendo que por duas razões.

A primeira, pelo caráter eminentemente humano da protagonista, que apesar de ser uma genial enxadrista, traz, em sua vida, as marcas de um passado sofrido, onde decepções, abandonos, crueldades e vícios (como diria Leminski: - “haja hoje, para tanto ontem”.) formam a moldura de uma personagem multifacetada, por vezes contraditória, com defeitos e virtudes, alegrias e tristezas, bons e maus momentos. 

Ou seja, uma protagonista como todos nós, que não somos apenas um, mas múltiplos em nuances e características, indo do egoísmo ao altruísmo em frações de segundos; sendo capazes de grandes gestos, e lamentavelmente de atos menos virtuosos e gentis dos quais muitas vezes nos arrependemos e queremos esquecer. (Neste ponto, nós, como a protagonista da série temos que perceber que mais do que causalidade, felicidade e sucesso são superação. Não são porque, mas apesar de...)

 E a segunda, por envolver o jogo de xadrez, um jogo de tabuleiro que remonta a tempos imemoriais, e que congrega tantas possibilidades (eita, mais uma vez a multiplicidade de escolhas), que fazem o mesmo se apresentar, a um só tempo, complexo e fascinante. Complexo, como dito, pelas suas múltiplas variantes, bastando verificar quantos livros foram escritos sobre o assunto. E fascinante, pela surpresa do indecifrável (e todo indecifrável é misterioso e todo mistério fascinante), pela elegância das armadilhas, pela blitz à sorrelfa, pela superioridade ganha apenas pelo posicionamento no tabuleiro.

No meu caso pessoal, agrego a estes argumentos, lembranças carinhosas da minha infância e juventude; memórias saudosas dos múltiplos jogos, ainda criança, com meu irmão – que me ensinou, e que eu inevitavelmente perdia. E das disputas, já adolescente, no recreio do colégio, onde ainda se conversava e se jogava xadrez, dama ou dominó, valorizando-se a presença do outro, quando ainda não existia internet.

Agrego, ainda, e principalmente para o caso do presente artigo, as lições que o aprendizado do xadrez traz. Para este momento, selecionei três aprendizados essenciais: a lição da sorte; a lição da governança e a lição da união. Vejamos cada uma delas, para ilustrar nosso raciocínio, começando, pela lição da sorte. (Ou, talvez dizendo melhor, pela lição da indiferença à sorte).

 Por que isso? Porque no xadrez a sorte é irrelevante, o jogador não se favorece por uma mão boa, como no jogo de cartas ou dominó; ou pela álea de bons números de dados. Os jogadores começam iguais e salvo a vantagem daquele que joga com as peças brancas (pois estas sempre começam e têm a iniciativa), somente o que interferirá no resultado da partida será a habilidade e a sabedoria do jogador em programar seus lances. (Lembro aquele meme: “simpatia para ter sorte e ganhar dinheiro: - acorde cedo, e vá trabalhar, com dedicação, honestidade e afinco”).

A lição da governança (ou da causa e efeito) advém do fato de que um jogador nunca pensa seu jogo unilateralmente; ele raciocina seu jogo a partir das possibilidades de jogadas de seu aniversário. Ele ataca e ao mesmo tempo previne ataques do adversário. Avança e neutraliza. Exatamente como na gestão e governança, quando temos que programar meios de fazer com que o resultado aconteça e pensar ações que previnam que riscos obstaculizem a ocorrência dos mesmos resultados. (Exatamente como na vida, quando temos que refletir sobre o efeito de nossas ações no outro, e laborar para que haja consenso, compreensão e sucesso).

E, por fim, a lição da união, pois, no tabuleiro todas as peças são importantes. Desde o simples peão, até a poderosa rainha, todos são importantes. E tanto é assim, que a simples vantagem de um peão pode ser decisiva para a vitória do jogador. Sabendo disso, os enxadristas protegem com afinco seu exército, cada peão, cada cavalo, cada bispo; todos são cuidados e protegidos exaustivamente. E a vitória, o xeque-mate, sempre será mérito do exercício da função de cada uma das peças, e mais das vezes, os humildes e singelos peões são grandes protagonistas (seja pelo seu trabalho operário, seja pela sua promoção a qualquer outra peça – outra lição de esperança e de possibilidade).

Muito bem, o caro leitor já deve estar intuindo, até pelo título, que estas lições de sorte, governança e de união, têm relação com a vacinação para prevenir o Covid-19. E quem pensou assim acertou. Mas, muito bem, como estas lições podem trazer uma metáfora válida para este mais do que esperado plano de vacinação?

Ora, tal qual o xadrez, este plano de vacinação não pode depender da sorte. Não se pode esperar que o acaso garanta que a doença não chegue a determinado grupo de pessoas, ou determinado local. Política pública e sorte não se misturam, no sentido de que toda e qualquer política pública deve ser baseada em elementos racionais e evidências. 

É certo que pode haver incertezas. O desconhecido está e estará sempre se apresentando. (Quer mais surpresas do que as trazidas por essa pandemia?) Mas o desconhecido deve ser tratado via ciência e escolhas racionais e técnicas. Não se escolhe baseado na álea ou achismo. Escolhe-se tendo em conta a maior probabilidade de êxito, e/ou com base em critérios defensáveis cientificamente, e/ou com base em uma escolha política racional, quando a ciência demonstra critérios de indiferença entre uma ou outra opção.

Também o plano de vacinação dependerá muito da governança. Tal qual o xadrez, onde temos que evitar os riscos de insucesso trazidos pela jogada do adversário (no caso, a pandemia). No plano de vacinação, têm que ser pensados os riscos de podem advir de problemas na logística da entrega das vacinas, do acondicionamento e preservação das mesmas, da prevenção quanto à falta de seringas, da suficiência de profissionais para aplicar as doses, da eficiência do transporte para que as vacinas cheguem a todos os pontos de nosso país continental. Sendo que, ainda como o xadrez, tudo depende das ações perpetradas desde o início: de que sejam compradas vacinas confiáveis, de que se adquira a quantidade suficiente de seringas, de que se treine, capacite e contrate o número de profissionais necessários, e assim sucessivamente.

E, por fim, a lição da união, que se revela, no caso da vacinação, no fato de que todos são importantes e que ninguém pode ficar para trás; sendo que, se houver pessoas ou grupos que estejam em maior risco imediato, estes têm que ter prioridade. Como assim, se o sucesso da empreitada depende primordialmente da atuação de um grupo de pessoas, como os profissionais de saúde, estes também têm que ter uma escala de primazia. O plano tem que ser racional e universal, contemplando a todos, mesmo que em fases diferentes. Uma única morte já é por si trágica, e temos que evitar que as mais de 180 mil tragédias ocorridas no Brasil, alonguem-se trazendo ainda mais dor e sofrimento em nosso país.

Aliás, neste ponto, você sabe o que significa a expressão gambito da rainha? Não, não estamos nos referindo à perna fina de uma soberana. O gambito da rainha denota uma jogada no xadrez onde um adversário usa uma artimanha na abertura, de pôr um peão para o sacrifício, para obter uma posição estratégica mais a frente, quase sempre recuperando e ampliando a vantagem inicialmente concedida, caminhando para a vitória. 

No caso deste gambito, este sacrifício normalmente não é levado a efeito, pois o oponente sabe de antemão que que se trata de uma armadilha, de uma pegadinha, de uma jogada que trará uma vantagem no imediato, mas que será perniciosa no longo prazo. E eis que surge mais uma lição do jogo de xadrez: este plano de vacinação não pode servir subterfúgio para contemplar interesses outros, sejam políticos, sejam econômicos. (E que acabarão desmascarados no longo prazo). Não é momento para pegadinhas, desinformação ou ganhos individuais. A guerra contra o Covid-19 é uma batalha de todos nós e a vitória tem que ser e será coletiva.

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