Artigo: Profissionais da Saúde - combatentes ou anjos da guarda?

25/01/2021 20:46

Por Luiz Eduardo Oliva


Artigo: Profissionais da Saúde - combatentes ou anjos da guarda?

Dizer o obvio é às vezes necessário, e até repetir banais figuras de linguagem. Nelson Rodrigues costumava usar a expressão “óbvio e ululante” para reafirmar aquilo que sendo óbvio às vezes era preciso repetir sempre, porque há os incrédulos ou até os que Rodrigues chamava de pascácios, para não dizer tolos. Então dizer que estamos em uma guerra contra um inimigo que ataca todo o mundo sem distinção é dizer o óbvio; e mais, do ponto de vista do inimigo, toda a humanidade, em tese, seria combatente. Seria, mas há aqueles que mais ajudam o inimigo que o seu semelhante: são os negacionistas, os que não acreditam na ciência, ou os que negligenciam diante de um inimigo invisível, lotando bares e praias ou não compreendendo que o isolamento é providência fundamental diante do desconhecido. Nas redes sociais não faltam os que condenam as medidas inquestionavelmente óbvias e ululantes.

Estamos de fato numa guerra? Há os que dizem que sim, comparam o combate ao vírus àquilo que seria a 3ª Guerra Mundial, considerando que toda a humanidade está em luta. Se a figura de linguagem leva à alegoria da guerra, quem seriam os combatentes? Por óbvio, os profissionais da saúde, sobretudo. Mas não somente eles porquanto existe a logística para fluir as atividades de saúde assim como a necessidade de um aparato logístico que vai para além deles, outros profissionais que dão suporte aos institutos e laboratórios que preparam a arma considerada letal para exterminar o inimigo: a vacina. Ou, por outra: se não exterminar, pelo menos dotar a população das defesas necessárias a evitar o inimigo com a imunização.

Essa semana que passou finalmente o Brasil viu a chegada das vacinas, ainda que com grande atraso e em quantidades insuficientes para a nossa população. O ato de vacinar se transformou numa espécie de condecoração àqueles e aquelas que se transformaram nos principais combatentes dessa que já é a maior tragédia do século XXI. Parece incrível, mas os séculos se contam mais pelas tragédias. Se, para muitos estudiosos a primeira guerra mundial inaugurou o século passado, é possível dizer que o século XXI começou em 2019 com a Covid e os estudos em tempo recorde que produziram as vacinas que é o resultado da ciência, sem a qual a humanidade não chegaria a tanto avanço. Triste, todavia ver que não faltaram os aproveitadores, prefeitos e outros servidores não listados furando a fila, ou os negacionistas a desestimular a única medida cientificamente comprovada para o combate à Covid.

Dessa “guerra”, por assim dizer, há de se destacar um exército que normalmente se veste de branco. São os profissionais da saúde, categoria múltipla em que sobressaem medico/a(s) e enfermeira/o(s). Mas seriam estes soldados ou anjos da guarda? Em Sergipe um desses profissionais que teve a sua vacinação como símbolo da importância da imunização, cujo ato foi por demais replicado nas redes sociais, foi veterano pneumologista sergipano Almiro Oliva, que é meu irmão. Médico há mais de 30 anos, logo no início da pandemia caiu em campo, mas contraiu a Covid-19 com gravidade. Assim que se recuperou, voltou ao front. Eu lhe indaguei se não estava sendo imprevidente dada à sua faixa de idade e à situação recente, ainda debilitado (Almiro já passa dos 60 anos); ele me disse: “eu me sentiria mal se não estivesse à frente. Fiz Medicina e nunca me senti tão médico como agora e já estou curado”. A escolha dele para ser o primeiro a ser vacinado no Hospital São Lucas, um dos mais tradicionais hospitais da rede privada, onde trabalha há quase três décadas, se deu por ser o decano dos médicos da linha de frente anti-Covid. Embora eu seja suspeito ao elogio ao irmão pelo amor fraternal, a referência que faço a ele não é só minha, o reconhecimento à sua dedicação é daquelas raras unanimidades que não é burra, como diria o já citado Nelson Rodrigues.

Mas é preciso dizer que Almiro representa uma legião desses profissionais anônimos que dão o sangue, por assim dizer. Não estão no patamar das celebridades que inundam as redes sociais na maioria incensadas pelo excesso do supérfluo. Profissionais da saúde em geral atuam em lugares fechados, sem holofotes nem o olhar da população, agindo no “fio da navalha”, desesperadamente lutando pela vida com a adrenalina à flor da pele contra o maior de todos os inimigos: a morte.

Agem quase sempre no ambiente fechado das Urgências dos hospitais ou nas Unidades de Tratamento Intensivo, estribados na ciência e paradoxalmente também sem perder muito deles a fé, fazendo o que o senso comum chamaria de milagre. O falecido músico Cazuza uma vez chamou os pacientes acometidos da AIDS quando ainda uma doença desconhecida, de “cobaias de Deus” talvez coubesse aos profissionais da saúde o epíteto de instrumentos de Deus. O meu irmão Almiro, um homem provido da excelência do saber científico é tomado, nas conversas do dia a dia pela dúvida na compreensão de Deus. Paradoxalmente não raro, pacientes e parentes o chamam de um anjo, eu lhe digo e ele humildemente, só sorri.

É isso, os verdadeiros profissionais da saúde são como anjos da guarda, não são só necessários, são fundamentais, salvam vidas. Não escolhem doentes, não discutem madrugadas perdidas, não fazem barganha mesmo diante do alto risco da atividade que desenvolvem, sobretudo neste momento de pandemia.

No célebre romance “A Ilha do Tesouro”, do escritor escocês Robert Louis Stevenson, há um momento de conflito de vida ou morte entre marinheiros amotinados que se rebelavam contra a tripulação da embarcação Hispaniola, que os conduzia em busca do tesouro (sempre o vil metal gerando conflitos). Do outro lado, contrário aos amotinados, estava o único médico da tripulação, o Dr. Livesey. Em dado momento, ouviram gritos entre os amotinados e alguém disse: “estão bêbados ou delirando”. O médico não pensou duas vezes em ir em socorro, mas os companheiros não deixaram pela possibilidade dele ser morto pelos amotinados. Ainda assim o Dr. Livesey balbuciou: “Se eu estivesse seguro de que eles estavam delirando, tenho a certeza moral de que pelo menos um, dentre eles, está com febre. Eu deveria deixar este campo e sob qual for o risco para a minha própria carcaça, e levar a eles a assistência do meu ofício”.

A “assistência do seu ofício” é certamente o simbolismo mais grandioso deste momento para a humanidade. O empenho, a dedicação e a ética médica ou, para melhor dizer, a ética dos profissionais da saúde - assim como a do fictício personagem Dr. Livesey -, é exemplo num mundo tão conturbado, onde lamentavelmente o ódio ainda impera e nem mesmo a gravidade da pandemia serve para abrir muitos corações e mentes.

O que há de incrível na maioria dos profissionais da saúde é a humildade. No front dos hospitais lotados eles se dão destemidos, sujeitos a ser acometidos da Covid como muitos o foram e muitos até tombaram definitivamente. Representam um exército de homens e mulheres, médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras, técnicos de enfermagem, e todo o aparato para dar suporte aos hospitais na limpeza, na preparação da alimentação, em criar a logística necessária ao combate. São guerreiros e guerreiras, são combatentes, são anjos da guarda! No peito de cada um cabe a condecoração da Legião Universal da Ética e na crença, sobretudo na ciência, sem precisar perder a fé. Assim a humanidade vencerá o vírus. E talvez, haverá mais compreensão, quiçá mais amor. Que vença então a ciência!

Luiz Eduardo Oliva é advogado, poeta e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.

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