Artigo: Liderar não significa ser um herói. Liderar é ser humano

24/03/2021 11:36

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: Liderar não significa ser um herói. Liderar é ser humano

Liderar não significa ser um herói, que do alto de um pedestal voa, utilizando poderes super-humanos para antever e resolver os problemas do reino. Não. Liderar é ser humano, é ser um humano com limitações e falhas, mas que usará toda sua potencialidade para inspirar confiança, bons propósitos e gerar consensos. Não é mostrar um caminho, já antecipadamente pronto, mas saber construir coletivamente um futuro que seja evolutivo e alvissareiro para toda a comunidade ”. 

Este pensamento é atribuído a Edutriv, o lendário e mais longevo soberano de Utopia. Governante que, segundo o cancioneiro imaginário diz, liderou por muitos anos o seu reino em direção à paz, à harmonia e ao desenvolvimento. E tudo isto, sem contar com nenhum atributo ou talento particularmente especial: não era o mais forte, o melhor orador, nem o mais bonito. E, talvez, por isso, por não ter nada disso, tenha conseguido resultados fazendo do serviço o seu ofício.

O fato é que, malgrado Edutriv, procuramos heróis (ainda mais em tempos tão sofridos como estes de pandemia). Talvez porque crescemos ouvindo sobre grandes homens e mulheres que, na história, na mitologia, nas revistas em quadrinhos, nos filmes, no dia-a-dia (estes são os mais importantes) nos inspiraram com suas ações e conquistas. Quando crianças, queremos ser como eles (e isto serve como motivo para os filhos se comportarem, se alimentarem, estudarem. Quem nunca...) São arquétipo, são modelo, são aspiração. São consolo e esperança. E, quando crescemos, acredito que esta semente de sonho e idealização nos acompanha, querendo que os heróis nos salvem dos problemas que a vida em comunidade apresenta. (Problemas dos quais, mais das vezes, nós mesmos temos que nos salvar...)

Adoramos heróis. Talvez pela coragem. Coragem em enfrentar os maiores perigos para cumprir o seu dever. Coragem para sair da sua zona de conforto, e desbravar o mundo em busca de cumprir sua missão. Coragem para esquecer o medo, e enfrentar a ameaça, a dor, e eventualmente até a morte. Coragem até para superar seus preconceitos, seus pré-juízos, suas convicções, quando estas fatalmente estão trazendo um mal coletivo (e aí não são mais convicções, são delírios).

Reverenciamos heróis. Quem sabe pelo altruísmo. Esta maravilhosa qualidade em que cuidar do outro pode ser tão ou mais importante do que cuidar de si mesmo. E isto não é fácil, já que o default da condição humana, que somente é superado por muito esforço e amadurecimento cultural, é o lema da “farinha pouca, meu pirão primeiro”. É mais natural no seio da família; e muito difícil no âmbito do impessoal comunitário. (É muito raro se ir de encontro à maré, e pensar no melhor para o outro, quando estão em jogo seus interesses egoísticos). Quem consegue ser altruísta, se destaca, é louvado, muitas vezes entra para a história (mas isto não significa que isto aconteça no aqui e agora).

 Admiramos heróis. Eu os admiro. Admiro por tudo que foi dito. Pela coragem, pelo senso de dever, pelo altruísmo. Mas os admiro mais por sua temperança e pelo seu comedimento. Heróis são poderosos, têm percepções, clarividências que muitos não têm; mas o verdadeiro herói usa sempre suas habilidades em prol do outro e do coletivo. A autorrestrição é própria do herói. Eu posso, mas não devo. Se eu não devo, não faço. É um corolário da coragem e do altruísmo; sendo que este comedimento, pelo que a história mostra, seja pelas tentações, seja pela ansiedade, soberba, prepotência, tão inerentes ao poder humano; nos parece, dos atributos, o mais difícil.

Mas concordo com Edutriv. Por mais paradoxal que seja, não quero um super-humano, com poderes e talentos especiais para ser líder. Quero um humano despido da armadura de herói. E explico o porquê. 

Primeiro, pelo motivo mais óbvio: os heróis não estão tão disponíveis para posições de liderança. Não há muitos (quantos heróis você conhece?). Lembrando que boa parte deles vive no mundo da fantasia; muitos não estão mais neste plano e alguns simplesmente, por serem heróis, e carregarem a perfeita noção de sua capacidade, não estejam interessados no assunto. 

Segundo, porque normalmente os heróis e heroínas têm profundo conhecimento e expertise em sua área de heroísmo. Uns combatem criminosos, outras buscam liberdade, outros salvam pessoas, outras protegem o meio-ambiente. (E assim sucessivamente). Mas a posição de liderança pública demanda um conhecimento multidisciplinar. Precisa entender de política criminal, de proteção das pessoas (e entender de pessoas), de liberdade de expressão, de desenvolvimento sustentável, de cuidado com a saúde coletiva (vacinação, por exemplo), da melhor maneira de semear a educação (mesmo sob as condições mais difíceis, como uma pandemia). Necessita ser múltiplo, e eu não sei se os heróis têm necessariamente formação e nem sei se se prepararam para isso.

Terceiro, talvez, por isso, os grandes líderes têm ao seu lado, ou procuram ter ao seu lado, grandes homens e mulheres com importantes feitos em prol da humanidade. Seja para ter inspiração e conselhos para o caminho certo; seja como elemento de controle, pois o verdadeiro herói não compactuará com uma liderança perversa, que traga o mal às pessoas. Ele ou ela se insurgirá contra isso. Separação de poderes, desde Montesquieu, é uma fórmula que vem dando certo. (Lembre-se que, no arquétipo das histórias em quadrinhos, não me recordo de que o Batman, ou Super-Homem, ou Mulher-Maravilha, tenham sido Presidente, Governador ou Prefeito...)

Quarto, porque nem sempre é evidente a figura do verdadeiro herói. O discurso, que precede a escolha do líder, nem sempre condiz com a futura realidade; e aquele que parecia, num primeiro momento, cheio de virtudes e predicados, pode representar nada mais do que uma falácia, um sonho não realizado, uma decepção. Neste contexto, quantas fraudes eleitorais, quanta ilusão em propagandas televisivas, quanta fumaça, quanta espuma precederam as máscaras que caíram, os desastres administrativos, as promessas de campanha descumpridas. Por isso, na dúvida, melhor do que o herói imaginário do discurso demagógico e populista, é aderir à liderança realista, de proposta factíveis e de críveis conquistas. 

Quinto, exatamente porque os heróis geram idolatria e reverência, eles não são os líderes ideais. Isto porque todo líder deve ser aplaudido quando acerta e refutado quando erra (mesmo se for um herói).  O líder é para ser respeitado e não ser adorado. Culturalmente já ultrapassamos o monarca representante do Divino e o soberano absoluto que não errava. Conquistamos com muito sacrifício o poder de escolher e criticar nossos líderes, e não podemos substituir esta racionalidade sadia, por uma paixão cega que a tudo chancela, ou que a tudo agrida.

Muito bem. Se quero um humano, sem capas, armaduras e superpoderes. Se não há necessidade de realização de nenhum feito mágico para ser líder. Se não nos devemos basear em uma predestinação guiada pelo destino. E se não quero promessas cuja única certeza é de que não serão cumpridas (e que o pusilânime torce para serem esquecidas). Quais os traços fundamentais para um governante? (Qual você acha, leitor amigo, que deve ser?)

Qualidades de liderança podem ser citadas muitas: honestidade, patriotismo, reverência à constituição, consciência e sensibilidade social, etc, etc, etc. Mas ouso, para tentar sair do óbvio, buscar qualidades que não são tão corriqueiras e que muitas vezes são esquecidas. E aí, vou mais uma vez concordar com Edutriv, para falar de consenso e inspiração.

 Um grande líder precisa unir, pois afinal ele lidera para todos. Ele, por definição, tem que querer a evolução coletiva e isto engloba cada pessoa. Neste ponto, ninguém pode ficar para trás. Somos participantes de um mesmo condomínio e temos (todos) um papel relevante a desempenhar. Não podemos abrir mão de ninguém. E aí, eu me lembro de minhas aulas de Física, onde mesmo colocando uma série de forças sob um objeto, se a resultante delas for nula (uma anulando a outra), a energia gasta pode até ser grande, mas será toda perdida e dissipada.

Então, se os problemas já são de difícil superação, imagine com um desfazendo o trabalho do outro, um criticando o trabalho do outro, um impedindo que o trabalho do outro seja feito. E o que é pior: ter alguém jogando uns contra outros, explorando o famigerado “nós contra eles”, que gera apenas mais alguns nós, cegos de paixão, e uma grande quantidade de eles, alijados do projeto de construção.

Daí porque é importante conquistar, somar, unir. Nós com eles é igual a somos. E se todos forem inspirados, se o líder conseguir não só a união, mas também que cada um dê o melhor de si; teremos, mais uma vez como nas aulas de Física, um máximo de eficiência. Uma sinergia coletiva, alcançando a todos, em busca da evolução (de todos). 

Lembrando sempre que o consenso e a inspiração, nascem da humildade de saber ajustar a caminhada de acordo com o obstáculo e a necessidade, e de saber, como dito, que todos importam. Aliás, neste sentido, uma grande sacada que a vida nos mostra, é que é muito salutar aprender com pessoas que sabem mais, ou, melhor dizendo, que não necessariamente sabem mais, mas sabem diferente de nós. (E perceber assim que todas as pessoas têm algo a nos ensinar e que todos nós temos muito a evoluir). 

Para finalizar, como falamos de líderes e heróis, e suas qualidades, trago um aspecto que sempre se relaciona com eles: o impossível. O impossível que o super-herói, por seus poderes, simplesmente desconhece. O impossível que o herói, por sua ousadia e determinação, desafia. O impossível com que o verdadeiro líder flerta, convive, analisa, e usando de estratégia, modificando as práticas de outrora, inspirando, tendo o consenso e colaboração de todos, este líder, parafraseando Jean Cocteau, desaprende que era impossível, e vai lá e faz (e torna o impossível, possível por outros caminhos). 

Diferentemente do mau líder, sobre o qual, as palavras de Edutriv, referenciando os exemplos deletérios do passado, vaticina: “fechado no seu sectarismo, o mau líder não ouve os sábios, não ouve as súplicas do povo, nem os conselheiros mais próximos. Segue sua sina repetindo obstinadamente a sua convicção fadada ao fracasso. Não sabia que era impossível (mas devia saber – quem quis saber, sabia) e foi lá e soube”. (E soube da pior maneira possível: exatamente quando todos perceberam que o que era uma grande chance de construção coletiva, tornou-se ao longo do tempo uma enorme ferida, que, mesmo à custa do altruísmo, e do esforço da maioria, demorará muito, muito mesmo para cicatrizar...).

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