Artigo: Epifanias, o enigma da casa amarela, e o encontro com o outro na alma da nova Lei de Licitações

04/06/2021 22:41

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: Epifanias, o enigma da casa amarela, e o encontro com o outro na alma da nova Lei de Licitações

Dois amigos, engenheiros formados na mesma faculdade, encontram-se depois de muito tempo, no meio de uma bela avenida, cheia de prédios antigos e casas. Vencida a dificuldade do reconhecimento (cabelos brancos, ausência de contexto, máscaras, etc), um pergunta para o outro:

- E aí, meu amigo, casou? Teve filhos?

- Sim! Casei e tive três meninas!

- Que legal! Qual a idade de suas filhas?

- Ah! Para responder esta pergunta e relembrar nossos tempos de faculdade, vou lhe propor uma charada:

- Legal! Vou tentar acertar!

- Bem, o produto da idade de minhas três filhas é trinta e seis. E a soma é igual ao número da casa amarela ali na frente.

 O outro engenheiro pensou um pouco, e logo disse:

- Ah, meu amigo! Assim estão faltando dados! Não dá para resolver!

 O formulador do enigma tirou um papel do bolso, fez algumas anotações, e aquiesceu:

- Sim! Você tem razão! Vou lhe dar a informação que falta! A mais velha toca piano!

O amigo, com a nova informação, imediatamente acertou as idades das três meninas. 

Ele acertou e eu também acertei, quando me passaram esta curiosa questão de raciocínio lógico, que caiu, salvo engano, em algum concurso público da área de engenharia. Apesar de meio estranha e aparentemente insolúvel, a questão é perfeitamente possível de resolver, por lógica e matemática, sem que seja necessário recorrer a nenhum tipo de pegadinha. 

Mas ela não é fácil, exatamente porque envolve um insight, uma percepção diferente, que efetivamente foge do usual (Deixo aqui a curiosidade. Quem quiser saber a resposta é só me perguntar, mas deixarei uma pista lá no final do artigo.) E quando percebi o detalhe que faltava, pense na alegria tive! A satisfação de ter sido capaz de ultrapassar aquele obstáculo que parecia impossível, inundando de dopamina, o cérebro de um ainda universitário de 20 anos...

Trago este exemplo, pois um dos motes do texto, tal qual foi descrito no título, trata exatamente das epifanias; ou seja, aquele estalo, aquele súbito entendimento que surge de um repente, e que, após ele, de um momento para outro, como que por mágica, passamos a saber resolver o problema insolúvel, ou conseguimos entender todos os aspectos de uma situação, ou simplesmente, e estas são as epifanias mais profundas, captamos aspectos do sentido da vida em nosso cotidiano. (E foi assim, num estalo, num repente, numa epifania que consegui resolver o problema da casa amarela.) 

Exemplos de epifanias, temos muitos, a começar pela maçã de Newton, a Heureca de Arquimedes, as múltiplas reflexões de Clarice Lispector, quando suas personagens, a partir de algo prosaico, conseguem perceber aspectos cruciais de suas existências, normalmente o tédio e a superficialidade (vide a epifania da barata em uma Paixão Segundo G.H – mais do que recomendo!) Nas músicas, uma das mais lindas e que merece registro, é a epifania do boiadeiro de Disparada, canção de Geraldo Vandré, que fala do homem que escapou da lógica de opressão e reprodução da opressão que lhe era imposta, pois um dia acordou, libertou-se de sua boiada, e hoje é cavaleiro, laço firme braço forte de um reino que não tem rei...)

 E este é o maravilhoso das epifanias: elas são sempre transformadoras, na medida em que o ser humano nunca é mais o mesmo depois de uma revelação. Ele passa a ver o que antes não via, perceber o que estava meio borrado, ler uma entrelinha que nunca se percebeu escrita. E esta é a ligação da epifania com a poesia e com a filosofia. Com a poesia, pois ela vem com a percepção da singularidade do momento, a beleza do sorriso, a unicidade do instante vivido (que pode ser sempre extraordinário, basta querermos). E com a filosofia, porque este momento de mudança pode modificar e traduzir o significado de toda uma vida... (Basta entendermos.)

Eu tive algumas epifanias em minha caminhada. E, repito, a sensação realmente é extraordinária, quando o problema visto e revisto, cuja solução não aparecia, é finalmente resolvido. Quando aquilo que no íntimo, percebemos desacertado, finalmente se encaixa e, a partir de então, tudo começa a fazer sentido. Tiramos o véu que encobria a resposta, o caminho, a postura correta, o raciocínio. Um véu que pode ser representado, por juízos anteriores, preconceitos, preguiça, repetição de conceitos, ou simplesmente seguir a corrente (Que se vislumbra ágil, mas com enorme tendência ao vazio.) Não percebemos muitas vezes o óbvio, só porque ele fica escondido entre o mais fácil e o mais acessível....

Talvez uma das mais importantes epifanias de minha vida foi aquela que me fez seguir o caminho jurídico. Engenheiro eletrônico formado, em 1996, resolvi começar meu segundo curso – o de Direito. Havia trilhado a Engenharia porque gostava de lógica, de números, e de resolver problemas que, no limite, poderiam melhorar o mundo. A Engenharia era a opção óbvia. E por ela caminhei por cinco anos, mas sempre um pouco desconcertado, confesso, com sentimento de não pertencimento, deslocado.

Depois de formado em Engenharia Eletrônica, e aí já servidor público, foi que percebi que o Direito, tal qual a Engenharia, demandava também muita lógica (a lógica da harmonia em relação ao sistema, e a lógica do silogismo na aplicação da lei). Também que o Direito trata primordialmente de resolver problemas na convivência humana, eliminando conflitos e propiciando a busca da paz e a conquista da felicidade. E que a paixão pelos números, que são também necessários no Direito, haja vista a estreita ligação entre Direito e Economia; poderia ser substituída por uma nova paixão: a linguagem!

 Caí de paixão pelas palavras, estas sim que sempre foram, as maiores propulsoras de transformação da humanidade. (E me engajei e me engajo todos os dias com esta perspectiva de transformação pelo labor jurídico, e dou graças a Deus por ter percebido isso).

Indo para outra revelação, já operador do Direito, sempre me angustiei com a eventual ineficácia de políticas públicas, com a ainda falta de concretização de direitos fundamentais (vide saúde e educação), com a falta de correlação entre o que existe como mandamento da constituição, e o interesse público que é efetivado na prática todos os dias. Foi então que percebi, aí já estudando para o mestrado, duas coisas (mais epifanias). 

Primeiro, que interesse público é somente aquele que concretiza ou tende a concretizar o projeto previsto na Constituição. Deste modo, ações administrativas que não se vinculam à efetivação da construção de uma sociedade livre juste e solidária, com a erradicação das desigualdades, com a promoção do bem de todos, e da garantia do desenvolvimento nacional, não podem ser denominadas interesse público. (A escola onde não tem alunos, o hospital desnecessário, o gasto que imobiliza as forças do futuro, não são configuram interesse de serviço ao público – servem outros interesses).

E, segundo, que a aplicação do Direito tem mais semelhança com um filme e não com uma fotografia. Isto porque, realmente, nem tudo pode ser concretizado de uma vez, nem todas as promessas constitucionais podem ser efetivadas de imediato. Neste prisma, e aí que vem o entendimento que unifica e clareia o sentido: se um direito fundamental não pode ser totalmente garantido agora, tal direito deve ser garantido hoje, na maior amplitude possível, e planejado de modo firme (com gestão de risco e análise de consequências) para que seja concretizado no futuro, no menor espaço de tempo factível. Ou seja, a concretização pode não caber na foto hoje, mas certamente cabe no filme, amanhã, mesmo que seja necessário ajustar a rota. (Por isso que uma ferramenta essencial do controle é o monitoramento contínuo. Exatamente para ver o filme que tende ao resultado e não apenas a fotografia, que pode nos enganar, tirando o foco e a perspectiva).

E, com esta base, e seguindo o caminho do título, pois o leitor e a leitora amiga já devem estar se perguntando, quando vou chegar nas licitações e em sua nova lei, a de nº 14.133/2021. Chego agora e explico, pois com a nova lei também veio uma epifania, uma revelação que adveio do excelente curso sobre licitações e contratos à luz do novel normativo, curso magnificamente ministrado pela Escola de Contas José Amado Nascimento do Tribunal de Contas do Estado de Sergipe. 

Realmente, ao longo do curso, onde tive o privilégio de ser palestrante em um dos módulos, foi por mais de uma vez pronunciada a lapidar frase da professora Tatiana Camarão, de que “a alma da nova lei de licitações é a governança”. Licitação e governança. Ora, parece algo simples, mas me soou intensamente profundo. Fez todo o sentido para mim. E mais do que isso: a frase conectou Direito Constitucional, Direito Administrativo, Economia e realidade prática. Pois, qual era o grande problema do sistema jurídico licitatório anterior e que deveria ser saneado mais do que depressa? Exatamente a efetividade das licitações. A entrega de bens e serviços à sociedade.

Deste modo, se por um lado, a nova lei se houve bem em uma série de questões de aperfeiçoamento do procedimento em si; ela foi estupendamente feliz ao tratar de temas como gestão de risco, planejamento das contratações, sistema de controle (e três linhas de defesa), necessidade de fiscalização estrita dos contratos, enfim todas aquelas providências de compliance (cumprimento) para garantir que o objeto, bem, obra ou serviço seja efetivamente entregue à sociedade por um preço justo. 

Licitação é sobre isso, diriam minhas filhas que adoram esta expressão. É sobre cumprir todas as etapas de um procedimento (desde o planejamento da fase interna até a fiscalização do contrato, passando pelas três linhas de defesa do controle), de modo a propiciar que os objetivos de vantajosidade, isonomia e desenvolvimento sustentável sejam cumpridos. 

E tais objetivos serão muito mais facilmente concretizados, se cada um dos mecanismos de governança previstos na nova lei funcionar corretamente. (Ou seja, a epifania está em perceber que a solução para a efetividade, está muito mais no trabalho árduo e diligente da boa gestão, do que em soluções jurídicas complexas. Ou seja, a nova Lei fez o simples: mais compliance/cumprimento, e menos complexidade).

Bem, chegando ao final, devo cumprir o prometido de lançar uma pista para o enigma da casa amarela. E a dica tem relação exatamente com a percepção do outro e da realidade. Quem adivinhou a idade das meninas estava lá, concretamente vendo o número da casa! Isto faz toda a diferença! Aliás, nestes tempos terríveis de Covid-19 perceber o outro e a realidade faz todo o sentido na ética da convivência,  e na operação do Direito, pois é na paz e cooperação social que nos desenvolvemos enquanto sociedade e conquistamos a felicidade; é no cumprimento evolutivo e sustentável da constituição que conseguiremos alcançar um Brasil melhor para cada um de nós (e logicamente para o outro); é através de uma melhor governança da gestão e das licitações que as políticas públicas necessárias a modificar a realidade presente para melhor (para todos e para o outro) poderão ser implementadas. Esta talvez seja a epifania mais importante, viver é coletivo. Só estaremos bem, quando soubermos incluir em nosso projeto de felicidade o outro – notadamente aquele que mais precisa.

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