Artigo: Centenário de Paulo Freire, a Constituição, e o índice de eficiência educacional

23/09/2021 18:30

Por: João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: Centenário de Paulo Freire, a Constituição, e o índice de eficiência educacional

Recentemente li o maravilhoso conto de Clarice Lispector – “Mensagem”, do livro Felicidade Clandestina (e, como diria minha filha, super-recomendo). Numa primeira leitura, confesso, fiquei um pouco perdido no texto, desorientado no conflito narrado entre os jovens protagonistas, e suas epifanias ao chegarem a um casarão antigo.

Mas perseverei. (E aí vale o conhecimento prévio do brilhantismo de Clarice, e das extraordinárias lições de humanidade que ela sempre traz). Reli o conto com vagar, fazendo uso do contexto da obra da escritora, de suas conhecidas angústias, notadamente em termos da busca de uma existência autêntica, de sua inquietude acerca da posição da mulher e, mais do que isso, da posição de uma escritora na sociedade.

E daí pude perceber as entrelinhas do texto e suas reflexões sobre o início amor; sobre a complexidade do encontro com o outro; sobre o machismo do pensamento dominante; sobre o perigo da acomodação ante um conservadorismo de mundo que pode subjugar sonhos e aspirações; e, talvez o mais importante de tudo, a reflexão sobre a própria capacidade de autodeterminação de cada indivíduo (e que, em última análise, é a única coisa que efetivamente pode nos pertencer).

E quando perseverei e insisti, percebi (quase como uma epifania de Clarice) o quanto, mais das vezes, olhamos sem realmente ver; pois, muito frequentemente, contemplamos o mundo com olhares vazios (de curiosidade, por exemplo), sem entender (e muitas vezes sem tentar entender) os mecanismos intricados das engrenagens da existência. E indo além, realizei, na apreensão do texto, e reconstruindo o mesmo a partir do meu pensamento crítico, e de minha crítica da realidade; o quanto que li no passado, sem captar mensagens, sem realizar extensões, sem introjectar ao menos uma mensagem/lição que o escritor quis passar. (A leitura é sempre uma viagem, mas ela pode ser curta, uma ponte-aérea, ou uma excursão maravilhosa sobre territórios a serem percebidos e construídos). 

 Pois, agora, com maior bagagem de leitura, mais estudo e mais experiente, aparecem para mim, claros (e que maravilha perceber a clareza!), tantos textos que, no passado, eu lia e não compreendia; que eu via, mas que para mim não existiam, porque eu não tinha a chave para sua compreensão. (Chave que eu podia ter buscado muito antes, talvez ainda muito jovem, mas eu achava que não era importante. Quanto tempo perdido! Vale, por isso, sempre, a lição de meu querido pai, que dizia em tom de brincadeira, de que “juventude é uma doença, que se cura dia-a-dia....). 

Olhar e não enxergar, perceber e não saber. Como se autodeterminar sem conhecer e trilhar todas as condições de possibilidade? Por isso, a importância da educação. Por isso, minha reverência à educação, pois ela me trouxe ao que sou hoje, e ela me dará condições de possibilidade a tudo o que eu possa almejar amanhã. (Sim, por que não? Novos objetivos e caminhos?) E daí minhas mais profundas homenagens ao grande educador e filósofo da Educação, Paulo Freire, cujo centenário foi comemorado, agora, dia 19 de setembro de 2022.

E, por que reverenciá-lo e homenageá-lo? Trago aqui os dois motivos principais (e isto não tem por base um achismo, ou uma admiração fulcrada em idolatria e/ou ideologia. Meu elogio se baseia em tudo que li acerca do processo educativo e suas consequências). Primeiro, pelos seus profundos ensinamentos de como se processa o mecanismo do conhecimento, e segundo (mas não menos importante), por ele enxergar a educação como um dever ético de respeito (e amor) ao próximo. Expliquemos.

Quanto ao processo do conhecimento, Freire era um crítico mordaz daquilo que ele denominava “educação bancária”, onde o professor tenta “depositar” o conhecimento durante as aulas, para depois “sacar” este conhecimento do aluno quando das avaliações. Processo que olvida completamente (e isto é explicado pela neurociência), de como o aprendizado se processa, na medida em que o mesmo não se transfere por download ou, como diria Freire, à maneira de um depósito. 

Muito longe disso. O aprender é construído paulatinamente como a água do mar que vai atingindo a areia, em patamares cada vez mais elevados, enquanto a maré sobe. (Aprende-se a ler, a escrever, a somar, a multiplicar, e em sequência, pode-se chegar a calcular análise combinatória, limites, derivadas e integrais...)

Ou funciona como uma parede que é pintada por etapas: a primeira mão de tinta, que já muda o visual (mas ainda com muitas imperfeições de cor); a segunda, que quase já assentou a nova coloração) e a terceira da perfeição. (Aprende-se um pouco na aula, mais ainda nos exercícios, assenta-se na revisão, cobra-se na prova, e repete-se o ciclo até que o conhecimento se internalize, e até que se esqueça que a parede teve outra cor ...)

E, para tanto, é necessário um permanente diálogo/interação professor-aluno, onde o professor ensina/aprende, explica/incentiva, corrige/orienta, para que cada etapa do conhecimento seja um redescobrir da realidade presente do aluno e que seja, um continuado e inexorável a abrir de portas para o universo. (E um caminhar em prol da autodeterminação e do protagonismo do próprio futuro.)

Daí que chegamos ao dever ético. O dever ético não só do professor, mas de todos nós (como preconizava Freire) de garantir à criança e ao adolescente o suprimento das condições para o cumprimento deste desejo, que é ínsito do ser humano, que é o de saber sempre mais, indo ao encontro da evolução e do crescimento intelectual, exatamente para que o indivíduo possa perceber a realidade do mundo e ser protagonista do próprio futuro.

E isto não pode ser negado a nenhum ser humano. Aliás, a questão não é de negativa. É uma questão afirmativa de que todos têm direito à oportunidade de conhecimento; e que é um dever de humanidade e dignidade, laborar para que este resultado aconteça. Dever ético que nos chama para uma solidariedade transformativa, que não apenas remove obstáculos, mas que, mais do que tudo, promove as condições para uma efetiva concretização de uma educação universal de qualidade.

 Daí a ética, no sentido de que temos que formar uma sociedade que não se conforma com entraves, e muito menos com o ciclo de reprodução que promove o status quo de desigualdades que ainda vivemos. Jamais. Temos que promover uma sociedade que sabe, por estarmos todos conectados, que o desenvolvimento social verdadeiro somente ocorrerá quando todos tiverem oportunidade de dar o melhor de si para a construção de nosso próprio destino, enquanto todo social (o individual irmanado construindo o coletivo).

 Objetivo que somente será realizado quando, em nosso tecido social, não houver possibilidade de alguém ficar para trás. (Fica sempre a pergunta: que tipo de sociedade quereríamos, se fôssemos nós que ficássemos para trás?)

E a Constituição? O que tem a ver com tudo isso?  Ora, se Paulo Freire falava em uma moldura de eficiência para o processo ensino/aprendizagem; e de um dever ético de todos para que este processo se efetive com excelência; nossa Constituição segue o mesmo caminho. Tudo porque, a uma, nossa Constituição consagra como norma jurídica (com exigibilidade e coercibilidade), o dever ético de promoção da educação (lembremos do art.205 da Lei Maior: “educação é direito de todos e dever do Estado”.)

A duas, porque a mesma Lei Magna estipula que o Poder Público tem que usar os meios mais efetivos para cumprimento dos seus desideratos normativos. Assim, se o art.205 consagra um dever, pelo Princípio Constitucional da Eficiência (art.37, caput), determina-se que este dever seja cumprido pelo melhor caminho possível – o melhor meio que cumpre o resultado desejado (educação para todos, com qualidade e equidade).

A três, porque, se não bastasse tudo isto, o art.3º da Lei Maior ordena que nosso objetivo, enquanto nação, é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com redução das desigualdades, onde se promova o bem de todos, com vista ao desenvolvimento nacional. Ou seja, nossa Constituição é de índole transformadora, em busca de uma sociedade mais igual, democrática, onde todos possam se desenvolver e solidariamente se autodeterminar. E, neste ponto, estou com Paulo Freire, no sentido de que, sem uma educação transformadora, não conseguiremos a transformação social que nossa Lei Magna preconiza.

E, caminhando no raciocínio, se a nossa Constituição transformadora exige uma educação de qualidade e transformadora, cabe aos órgãos de controle da Administração Pública laborar para que tal transformação pela educação ocorra na prática. Daí que o Ministério Público de Contas de Sergipe em parceria com o Tribunal de Contas sergipano, celebrou, junto com a UNDIME/SE (União dos Dirigentes Municipais da Educação em Sergipe), com a UNCME (União dos Conselhos Municipais de Educação), com a FAMES (Federação dos Municípios do Estado de Sergipe) e a Secretaria de Estado da Educação, o Pacto pela Educação Sergipana. Uma somação de esforços em prol da educação e do futuro de nosso Estado.

Sim, mas e o índice de eficiência educacional? Ora, este é exatamente um dos trabalhos efetivados no âmbito do Pacto (trabalho inclusive premiado nacionalmente), onde o MPC/SE promoveu o cálculo deste índice de eficiência – índice que congrega, a um só tempo, a nota do IDEB (índice da educação básica) de cada Município (refletindo proficiência no aprendizado dos alunos e a média de aprovação destes alunos ao final do ano), junto ao custo anual por aluno daquela mesma rede.

E, sintetizando as conclusões do cálculo do referido índice, ficou bastante claro que a questão de desempenho educacional, não é apenas uma questão de existência ou não de recursos. Mas principalmente, é uma questão de eficiência na aplicação destes mesmos recursos; o que envolve, indubitavelmente, uma vontade política de fazer a educação como um objetivo institucional, e de fazê-la transformadora como preconiza a Constituição (dever ético de eficiência e transformação, como aduz Freire.

Tudo porque, simplesmente verificamos que a rede de melhor desempenho na nota do IDEB (nota média de 5,25), a rede municipal de Itabaianinha, foi também a rede de menor custo-aluno anual (cerca de R$ 6.200 por aluno, por ano). Sendo constatada a existência de redes municipais de ensino com custo-aluno anual superior a R$ 13.000,00 por aluno, por ano, detendo estas redes, nota do IDEB bastante inferior (menor do que 3,0 em quase todos os casos ...). 

Neste prisma, em nossa opinião, o que gera resultado é um cuidado proporcional e multifacetado com todos os aspectos que envolvem o ensino: estrutura das escolas; transporte escolar eficiente; merenda escolar de qualidade; professores e profissionais da educação bem treinados, motivados e com remuneração digna e condizente com seu desempenho e responsabilidades, e de acordo com os parâmetros normativos; diretores de escolas profissionalizados; conselhos bem estruturados e famílias e sociedade participando do desenvolvimento social dos estudantes.

Sem jamais esquecer, do uso das melhores técnicas pedagógicas de construção do conhecimento; o que, inclui, neste momento crítico de retorno às aulas pós-pandemia, o que eu chamo da tríade da esperança na educação: a) o retorno das aulas presenciais; b) a avaliação diagnóstica das perdas de aprendizado pelas dificuldades com o ensino remoto; e c) as aulas de reforço para reposição das perdas. 

Ou seja, gestão pedagógica e gestão administrativa, em conjugação de esforços para que haja um salto de qualidade na educação. Eficiência e vontade de fazer a educação acontecer – Paulo Freire realmente tinha razão.

Para finalizar, trago para o querido leitor e para a querida leitora, uma confidência acerca de duas coisas que me inspiram, e que, posso dizer mais, sempre me emocionam. A primeira é ver um avião de grande porte levantar voo (e às vezes fico na balaustrada do aeroporto silenciosamente assistindo o acelerar da aeronave em direção ao céu). A segunda, é ver crianças correndo e sorridentemente brincando nos recreios dos colégios (com a alegria de quem vive o presente e brinda o futuro, no lúdico e no aprendizado). 

Não sei a conexão entre estes dois fatos, mas algo me diz que talvez tenha relação com a emoção que sinto quando a educação sergipana avança. Algo que tem a ver com o desejo de ver nossas crianças e adolescentes criarem asas, e viajarem plenos com o espanto natural de quem a cada momento descobre e se encanta com outros mundos. 

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