Artigo: Sobre perdas e aprendizados. Uma homenagem ao meu querido pai

30/04/2021 07:23

Por João Augusto Bandeira


Artigo: Sobre perdas e aprendizados. Uma homenagem ao meu querido pai

É sobre isso. Lamentavelmente vivemos um mês de abril de muitas perdas e tristeza. Os efeitos da pandemia da Covid-19 são devastadores na vida pessoal de cada um. O que mais vejo são pessoas assustadas, inquietas, ansiosas e, principalmente machucadas, física e psicologicamente. Seja pela doença em si, que maltrata muito o organismo; seja pela partida de parentes e amigos queridos, muitas vezes após longa vigília e sofrimento; seja, no geral, por aquela sensação de incerteza e desconhecido, sobre quem será a próxima vítima. Vemos irem embora pessoas e sonhos (como não ter empatia com quem vê o seu mundo cair e a pessoa sem chão); e, neste contexto, parece que todo sorriso que ousamos esboçar, traz consigo a marca da angústia destes dias, e transparece desacertado, constrangido, deslocado, meio amarelo, com a sensação de perigo.

É sobre isso. Sobre perdas atuais e perdas mais antigas, mas que continuam presentes. Abril também traz lembranças de um passado recente, de alegria que passou a dor e se transformou em saudade. Neste mês, seria comemorado o aniversário de meu querido pai, Francisco Bandeira de Mello, Bandeirinha. Em 29 de abril de 2021, ele faria oitenta e cinco anos. Seu sorriso foi embora, precocemente, em 2011 (dez anos, e seu sorriso parece que foi ontem), levando um pouco de nós, família e amigos, no caminho. Uma pena. Este é o sentimento geral daqueles que conheceram de perto Bandeirinha, que conheceram seu sorriso, e muito mais do que isso, sua sensibilidade, sua gentileza, sua integridade, seu carinho. Queríamos mais (sempre queremos mais até aprendermos a sermos absolutamente gratos), mas o seu tempo foi todo de um legado maravilhoso de lembranças, exemplos e aprendizado.

É sobre isso, perdas atuais e antigas e do aprendizado que delas advém. A pandemia tem nos ensinado (muitas vezes no fórceps da dor) muitas coisas. Aprendemos a ser mais responsáveis, percebendo que nossa responsabilidade vai muito além de nossa simples intenção de fazer o certo, ou de não querer fazer o errado. Nossa responsabilidade com o outro e com nós mesmos, é de efetivamente procurar saber o que é certo, e fazê-lo, cuidando do outro e tendo como consequência, o ato de cuidar de nós mesmos. Aprendemos a buscar o essencial, aquele essencial que se perdia na correria dos check-lists; das listas de tarefas, muitas vezes inúteis; das compras, eminentemente supérfluas que traziam a felicidade de um minuto; do rol dos “tem que”, representado por tudo aquilo que tínhamos que fazer, sem entender muito bem o porquê, mas que seguíamos fazendo, indo a lugares que não queríamos ir, escutando conversas que nem ouvíamos, assinando atas de presença, que nunca seriam checadas.

É sobre isso, sobre o que aprendemos nas perdas. E sobre como é importante falar disso. A ciência repete esse mantra a todo instante, e, na minha visão de leigo (logo, mera opinião), acho que faz todo sentido. Digo isso porque imagino que falar sobre a perda, é aprender a conviver com ela; é transformá-la de expectativa em realidade. Da expectativa ruim, sempre antevista no pior cenário, e que nos adoece, corrói e paralisa; para a realidade que é árida, mas dinâmica, que evolui a chuva intensa da dor em gotas mais suaves de saudade.

 Então, se é sobre falar sobre perdas, mas principalmente sobre aprendizado, aproveito a paciência do leitor amigo e da leitora amiga, para falar de três lições, entre tantas e tantas, que trago da lembrança da convivência com meu pai. E, neste mister, procurarei falar daquelas que foram muito úteis na minha formação e que podem ser particularmente alvissareiras neste momento de intensas transformações em que vivemos. Lições em que cada uma tem seu signo, mas que todas se completam e se confundem sob um signo da sustentabilidade.

É sobre isso, a primeira lição, sobre sensibilidade. Sensibilidade em perceber o que é eterno, duradouro. E a arte tem muita relação com isso. Se estou escrevendo hoje, isto tem imensa relação com meu pai, que escreveu artigos por anos a fio no Jornal do Commercio de Pernambuco (e, por anos, tive o privilégio de ler cada artigo, em primeira mão, para fazer a revisão). Se hoje tento aliar reflexão e ritmo, forma e conteúdo aos textos, esta é uma doce herança de Francisco Bandeira de Mello.

E não apenas isso, com papai aprendi a apreciar poesia, e entendê-las como o aprisionamento de um instante ou sentimento, ou até mesmo do som, daquilo é belo. Passei a entender um pouco de pintura, e dos grandes mestres espanhóis, italianos, holandeses e brasileiros. E aprendi que viajar não é simplesmente sair do seu país em busca de diversão, mas sim desbravar outros patamares de entendimento da humanidade, onde os museus e os monumentos históricos são protagonistas desta escada espiritual. Daí a foto acima da maravilhosa e eterna Plaza Mayor de Madrid, primeiro monumento extraordinário que vi, em viagem familiar (ou seria cultural?) com papai em 1996.  (E se o eterno é o que fica, depois de passados os anos, então o eterno e o sustentável convergem, mostrando o que é de fato relevante para a humanidade. Sensibilidade para perceber o eterno, sensibilidade para perceber o instante que um dia se tornará eterno, exatamente como papai fazia).

É sobre isso, segunda lição, sobre altruísmo. Altruísmo em não querer tudo para si, e em sempre pensar coletivo. Em não querer encher a mão quando lhe oferecem algo, lembrando que há outros na fila (e respeitar a fila). Em não querer uma vantagem somente porque ela lhe é possível (talvez não lhe seja cabível). Em não querer mais do que o estritamente justo. Em não querer mais do mundo do que logrou alcançar. Em não querer nada a mais do mundo, se alguém puder sofrer ou se prejudicar.

Foi assim em toda sua trajetória, recusando alguns projetos que o levassem para longe do país, ou de sua família, ou dos dois. E, nesta toada, que poderia ser vista como timidez ou ausência de ambição, conquistou tudo, absolutamente tudo que lhe entendeu devido, como poeta, escritor, jornalista, servidor público, amigo, irmão, pai, marido. (Anote-se que pensamento sustentável /coletivo é o que é mais necessário nesta pandemia, onde o combate ao vírus não vai ter sucesso sem coordenação, alinhamento e consenso. E, principalmente, sem o bom senso, de quem insiste em caminhar sozinho, pensando unicamente nos próprios caminhos).

 E é sobre isso, terceira lição, sobre a liderança da gentileza e do exemplo. Ele não mandava ninguém fazer nada. Ele pedia. Faça o que eu peço, porque eu faço o que eu digo, poderia ser o seu lema. Não levantava a voz. Controlado, procurava não se exaltar. Não praguejava. Observava. Não falava mal dos outros, não fazia intrigas. Apesar do sempre demonstrado orgulho e amor imensurável amor pelos filhos, sentia pelo seu olhar bondoso, que constrangia ao melhor caminho, que algumas vezes o decepcionava.

Principalmente no que tange à leitura, pois eu, muitas vezes, como o adolescente que se acha, não tinha tanto apreço pelos clássicos que ele lera intensamente na juventude e que hoje me fazem falta. Como também por não gostar dos filmes de diretores consagrados, e preferir os blockbusters como Guerra nas Estrelas, ou outros talvez menos prestigiados como Rambo ou Rocky, um lutador. (Ainda hoje estou devendo assistir novamente ao filme de Frederico Fellini - Ensaio de Orquestra, filme que eu adolescente detestei, mas que papai gostou muito. Ou rever a grandiosidade de Cidadão Kane para reviver sua presença e seu entusiasmo, seus olhos brilhando...Saudade.)

 Mas mesmo assim, mesmo nitidamente irritado ou decepcionado, ele não usava da força, não obrigava. Preferia lançar a semente do que obrigar a uma colheita indesejada. E quantas sementes ele lançava. Nas conversas durante o jantar. Em recitar poesias em voz alta. Em comentar sobre os melhores livros. Em contar histórias sobre os grandes escritores, cineastas, artistas da humanidade. Todos os dias eram pequenos brotos culturais, que ele sabia, no futuro, germinariam em antenas de melhor compreensão do mundo. (E existe aposta maior na sustentabilidade do que lançar sementes e criar o ambiente para sua germinação?)

E as sementes prosperaram, talvez porque papai, em sua maturidade evoluída, tivesse plena consciência (ainda que no subconsciente) de que nós, pais, temos que nos acostumar com as diferentes maneiras de pensar, sentir e se comunicar de nossos filhos. Diferenças que são absolutamente naturais, pois apesar de habitarmos o mesmo meio físico, o universo que nos envolve é construído de modo diferente na mente de cada pessoa (e de cada família). E se isto vale para toda pessoa, imagine se houver todo um abismo geracional, que normalmente separa pais e filhos.

Ele sabia disso (ou ao menos sentia isso). Sabia/sentia que cada um tem seu tempo. E que a perda de tempo pode ser um erro grande. Mas que às vezes este grande erro, pode ser uma fonte imensa de sabedoria. Eu poderia ter escolhido o caminho mais fácil, mas agradeço o caminho mais difícil, que certamente, pelas pedras que educam (papai gostaria desta expressão que remonta a João Cabral de Melo Neto), traz muitas lições de aprendizado. (E, nesta pandemia, o que mais precisamos é de aprendizado pelo exemplo. Precisamos de lideranças convergentes, precisamos de diálogo, precisamos de foco no que interessa. Precisamos que as pessoas olhem nos nossos olhos e queiram efetivamente o bem umas das outras. E lembrando que o essencial ensina: vacina, vacina, vacina).

Aliás, neste ponto, vale um parêntese. Se houve aprendizado, surge o dever ético do legado. E humildemente tento passar o legado de meus pais para minhas filhas. (Sendo certo que, apesar do evidente protagonismo de Bandeirinha neste texto, pela própria homenagem em si, posso garantir que D. Sylvia, minha querida mãe, não fica atrás, nem por um milímetro ou momento, em qualidades e méritos).

Óbvio que não é simples. Pessoas diferentes. Tempos diferentes fazem com que os desafios sejam próprios e diversos. Um deles é o da comunicação, pois, a cultura do celular e da internet faz com que as diferenças de signos comunicativos sejam mais extensas e evidentes. No caso de minhas filhas, boa parte da comunicação é feita com expressões retiradas de memes da intenet e figurinhas de whatsapp. E sempre que há uma lacuna de entendimento, elas dizem de modo uníssono, com um sorriso nos lábios: - é sobre isso, papai. E completam: - e tá tudo bem. Então leitor amigo, é sobre isso também, sobre uma conciliação de gerações, onde cada é sobre isso, na realidade é sobre tudo, pois é no todo, no ontológico, que a verdadeira compreensão se estabelece, e as almas se completam, e um vislumbre de infinito aparece...

Fechando o parêntese, ao tempo que peço desculpas pela digressão, voltando à argumentação e já concluindo (já vi gente ser aplaudida em discursos longos, quando disse: para concluir...); temos que é sobre isso. Sobre este abril de vivência de perdas, de lembranças de perdas, que já está se concluindo; e, sobre quando, graças a Deus, já avistamos o ressurgimento de um maio com uma esperança de um novo ciclo. Lamentavelmente não posso dizer que a angústia e o sofrimento se extinguirão; mas como crente que a vida tem um sentido, e que a humanidade tem um sentido, que é o sentido da evolução; acredito que as dores de hoje servirão para a construção de um futuro melhor. (Como a carinhosa presença em saudade de papai, certamente me faz um ser humano melhor.) Que venha um futuro melhor para todos nós. Como é o desejo de nossos pais, como era o desejo de todos queridos que partiram. É sobre isso, quase escuto Bandeirinha dizer. E vai ficar tudo bem.

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