Artigo: Recomposição da aprendizagem: precisamos abrir as portas para o futuro de nossos alunos. - Por Bandeira de Mello

06/07/2022 13:39


Artigo: Recomposição da aprendizagem: precisamos abrir as portas para o futuro de nossos alunos. - Por Bandeira de Mello

Por João Augusto Bandeirade Mello

Cena 1 (um): Aluno que trabalha, cansado, frente a um assunto complexo no curso de Engenharia, ministrado por um professor com o qual ele não conseguiu se conectar; desmotivado, este aluno, não tendo a antevisão/maturidade necessária de que era necessário um esforço pessoal urgente para suprir aquela dificuldade, acaba por reprovar solenemente na matéria, e de tal maneira, que não conseguia nem formular uma questão acerca do conteúdo. (Pois, para surgir a pergunta, demanda-se uma incompreensão, um desajuste, algo que não surge na situação de total alheamento em relação ao que está sendo ministrado...)

Cena 2 (dois): É noite, mais de nove horas. Criança é levada a assistir ao maravilhoso Balé Bolshoi. O espetáculo atrasa um pouco e finalmente começa. O encantamento é total: figurinos maravilhosos e dezenas de bailarinos parece que flutuam ao som das mais maravilhosas músicas clássicas já compostas. Os pais e irmãos mais velhos de olhos grudados na magnífica dança. A criança admira-se de tudo aquilo. Percebe que é algo grandioso, mas, devagarinho, embalada pela suavidade do espetáculo e pelo carinho do ar condicionado, solenemente dorme até as cortinas descerem e as luzes se acenderem indicando a hora de ir para casa. (O conhecimento entra na alma pela janela da atenção, mas, às vezes, o ambiente, o entorno, as circunstâncias em volta, vão tornando opacas as percepções da janela do presente e iluminam outras dimensões de pensamentos distantes, muito longe do estar aqui).

Cena 3 (três): Congresso de Direito: palestras técnicas de alto gabarito. O participante (que naquele momento nada mais é do que um aluno) chega uns vinte minutos atrasado no horário da tarde, pois a ida ao almoço alongou-se, já que houve problema no fechamento da conta no restaurante, e o trânsito não ajudou na volta. O participante, que adora anotar as principais ideias e resumir o conteúdo das palestras assistidas, tem uma enorme dificuldade em fazê-lo, pois, por ter chegado tarde, esbaforido, não consegue se conectar como gostaria ao que está sendo exposto, pois perdeu completamente (e solenemente) o fio da meada.... (É como estar no meio da floresta, à noite. Pode até se ter uma enorme vontade de caminhar e chegar, mas não se tem a mais remota de para onde é o próximo passo. O jeito é esperar uma pista ou ajuda...).

Querida leitora, o querido leitor, todas estas cenas demonstram como o processo de conhecimento esperado para uma aula, um espetáculo, um evento, podem não ser bem-sucedido. Denotam como não basta colocar o aprendizado à disposição, para que o mesmo seja automaticamente apreendido. É preciso mais. É necessário tudo um processo de motivação no outro para que este possa se apropriar do conhecimento e o construa para si, tijolo por tijolo, parafraseando Chico Buarque, em sua magnífica “Construção”, num desenho lógico ou mágico. (Para compartilhar conhecimento, precisa-se de um processo de busca do outro, especialmente quando este outro está perdido pela ausência de sentido...)

E por que trago estas cenas para o artigo? Por dois motivos. O primeiro, como vocês já devem ter desconfiado, decorre do fato de que fui eu que vivi todas as cenas relatadas acima. E fui eu quem sentiu na pele a impotência, o prejuízo, o fracasso em (não) aproveitar aquelas oportunidades (que eram únicas no momento, mas que graças a Deus, puderam se repetir no futuro) de crescer e evoluir em cultura e aprendizado.

Sentimento que quero compartilhar e que serve como alerta para todos e cada um, especialmente os jovens, de que não se aprende de forma automática, por osmose, por download, ou em qualquer tempo sob quaisquer condições. Muito pelo contrário, a construção do conhecimento demanda campo fértil, o que envolve um esforço colaborativo, coletivo, comprometido e técnico, de quem aprende, de quem ensina e de quem tem o dever de garantir as melhores condições para o aprendizado.

Quanto ao segundo motivo (e fulcro do presente artigo), para explicá-lo, peço vênia para ilustrar mais duas cenas, relativas ao processo de aprendizagem.

 Cena 4 (quatro): 2022, uma escola municipal. Alunos do 3º ano do Ensino Fundamental tentam decifrar um problema de matemática. 2020 e 2021 foram anos de pandemia em que quase não houve aulas presenciais. As aulas remotas não foram acompanhadas, seja por falta de equipamentos de informática, seja por ausência de internet, seja simplesmente porque não havia a menor condição de um aprendizado naqueles momentos difíceis da Covid-19. Os alunos olham as letras com estranheza – não conseguem apreender o que está sendo solicitado. Uns olham para o teto, outros conversam entre si. O sorriso de esperança e inocência sempre permanece: - talvez seja assim mesmo. A tia disse que amanhã vai melhorar...

Cena 5 (cinco): 2022, mesma escola. Alunos do 6ª ano estranham a nova sistemática: não têm mais a professora regente. Agora são vários professores, cada um tratando de uma matéria. Todos vêm ao quadro e falam com muita ênfase e desenvoltura sobre Ciências, História, Geografia, Português e Matemática. Os alunos escutam, mas não conseguem compreender exatamente sobre o que se está falando. Ferramentas básicas de leitura e compreensão de texto faltam. Conceitos iniciais propedêuticos das outras matérias também. Um aluno chega a dizer: - o professor é legal! Adoro a aula! Espero algum poder entendê-la. Outro, menos paciente, diz: - Que perda de tempo! Bem que me disseram que meu lugar nunca será aqui...

Ora, as cenas 4 e 5 acima são ficcionais, mas lhes garanto que são baseadas em experiências reais e relatos colhidos junto aos Dirigentes Municipais de Educação e integrantes do Pacto pela Educação Sergipana. E retratam o enorme desafio de crianças e adolescentes, que foram atropelados pela pandemia, e, como espelhado acima, passaram dois anos sob um ensino remoto improvisado em última hora que: quando havia aula, não havia equipamento para assistir (não havia computador ou celular, e se houvesse, tinha que ser divido por vários irmãos, privilegiando a criança da vez); quando havia equipamento, não havia internet (que se torna um insumo básico de nossa vida em sociedade); quando havia os dois, a intranquilidade, o medo e a tensão da vida pandêmica impediam uma efetiva comunhão de aprendizagem. (É certo que sem atenção não há aprendizado, e como amplificar a atenção, quando as distrações se impõem em uma guerra sanitária...)

Os especialistas em Educação dizem que ocorreu uma tragédia silenciosa, pois se os resultados educacionais em tempos normais correspondiam a menos de 70% do aprendizado mínimo dos países desenvolvidos; com a pandemia, a situação agravou-se, pois os Municípios que vinham efetivando melhorias na seara educacional, tiveram, com os alunos fora das escolas, um retrocesso, atrasando o processo de aperfeiçoamento. E aqueles, que já estavam em situação calamitosa com os piores resultados, ratificaram sua situação, piorada tendo em vista o aumento dos índices de evasão escolar.

Ou seja, vivemos uma hecatombe de aprendizagem que, se não enfrentada, pode gerar duas consequências terríveis. A primeira consequência é o efeito dominó de que as lacunas de conhecimento não preenchidas durante a pandemia, impeçam que sejam agregados os conhecimentos posteriores. Fato que é fácil de visualizar, pois, se a criança não aprende a ler, como estudará para aprender os demais conteúdos? Como fará as provas? Se não aprendeu a somar, como vai aprender a multiplicar e dividir? Se não aprendeu divisão, como aprenderá fração?

E assim sucessivamente de desacerto e erro, da falta de passo e descompasso que levam o aluno a chegar ao final do ensino médio sem a proficiência mínima esperada (o ensino é como uma escada em que o conhecimento anterior permite alcançar o próximo degrau, em sequência, até o final. Se houver um buraco na escada, uma de duas, a parada ou a queda...)

Mas o que é ruim, pode ser pior, pois podemos alcançar, como já adiantado, a segunda consequência terrível, que seria exatamente, entendendo a absoluta falta de sentido de estar ali, sem desenvolvimento, sem evolução, não agregando nada ao seu conhecimento, parecendo simplesmente que o professor fala grego; este aluno implacavelmente desistir do ofício escolar, e assim aplacar, suas dores, suas decepções, seus medos, cedendo aos apelos imediatos das ruas, dos jogos, dos prazeres imediatos, ao perigo das drogas....

Sim, mas apontar problemas é relativamente fácil. Temos que pensar nas soluções. E, neste passo, não tenho dúvidas de que a solução passa por ações eficientes, eficazes e efetivas de recomposição da aprendizagem.  Recuperação esta que já era necessária antes, quando ano após ano, os resultados do IDEB sergipano patinavam sem acréscimo significativo; e que se torna premente agora, quando a pandemia desnudou a tragédia mencionada, e nos exorta a tomarmos providências para mitigá-la. Mas, o que fazer?

Uma alternativa a ser trilhada é, como está sendo feito pela Secretaria de Estado de Educação sergipana, o quanto antes, identificar os alunos que estão em situação de risco de abandono e de repetência. Isto mesmo, um a um, de forma acolhedora e individual. E a partir deste diagnóstico, encetar uma série de ações junto ao aluno e à família para que o aluno frequente a aula; e, estando regularmente na escola, compreenda-se qual a sua dificuldade; trabalhando-se, com auxílio de monitores, aspectos específicos de leitura, de gramática, de matemática e outros pilares, como geografia, história e ciências.

Aliás, por falar em leitura, merecem também destaque, ações da Secretaria Municipal de Educação de Aracaju, que está desenvolvendo um trabalho árduo de aperfeiçoamento da competência leitura em seus alunos, onde, com auxílio de softwares específicos, está sendo medida a capacidade e o desenvolvimento da leitura de cada aluno aracajuano, havendo acompanhamento do progresso realizado e planejamento de ações específicas para que este progresso possa ser sempre consistente.

Citei estes exemplos, mas posso asseverar que há muitos esforços semelhantes, em muitos outros Municípios sergipanos e brasileiros, como o exemplo do Município alagoano de Coruripe, que, dentre outras ações, adotou uma solução simples: os melhores esforços e melhores profissionais devem ser alocados nas escolas com mais dificuldades – verdadeiro paradigma de como agir com equidade (aliás, agir com equidade é um dos cânones do novo Fundeb, que condiciona exatamente parte da alocação de recursos à redução das desigualdades educacionais).

É importante frisar que mitigar os vácuos educacionais não é uma mera faculdade, um agir benemérito, ou um ato de discricionariedade. De maneira alguma. Garantir um efetivo aprendizado é obrigação do Poder Público no âmbito do processo educacional. E isto se justifica de diversas maneiras: seja porque a Constituição (A Lei das leis) garante a dignidade da pessoa humana, e um dos prismas fundamentais da dignidade é a educação; seja porque a educação é um dos maiores orçamentos estatais e a Carta Magna não se compadece com aplicação ineficiente, ineficaz e pouco efetiva dos recursos; seja simplesmente porque Educação é direito de todos e dever do Estado.

Cena 6 (seis): aquele mesmo aluno da cena 1 (um), em outra disciplina e outro professor, vai muito mal na primeira prova. Resolve apenas uma questão e de forma incompleta. Sai cabisbaixo da avaliação e quase vai à Secretaria do curso trancar aquela matéria. Mas como havia prazo, não tranca, e continua a frequentar a disciplina. O professor apesar de rigoroso, incentiva ele e outros alunos a permanecerem. Se oferece para tirar dúvidas e indicar materiais para aprofundamento. O aluno entende o chamado, atende e se recupera na segunda prova. E consegue, com esforço, passar na final. A caminhada seguiu adiante, o aluno formou-se e hoje carrega com orgulho seu diploma de Engenheiro, ao qual foi agregado um outro diploma de Direito.

Nunca me esqueci deste Professor, que ensinou esforço e perseverança. Compromisso e comprometimento. Mostrou-me que, quando o aluno está perdido, parece que o mundo é um grande labirinto onde não conseguimos nos localizar. Mas quando percebemos a lógica do que está sendo ministrado, percebemos que, nas paredes daquele labirinto antes indecifrável, há pistas e portas que nos levam de uma sala (de aula) a outra, de um ano a outro, sempre avançando. E que, neste descobrir, também chamado evolução e aprendizado, em vez andarmos em círculos patinando, estaremos construindo nosso destino, sendo senhores de nossos caminhos e de nossa autodeterminação, caminhando para o único vaticínio que é realmente nosso e que deveria ser inexorável: o de sermos protagonistas de nosso próprio futuro.

João Augusto Bandeira de Mello é Pernambucano e sergipano, possui graduação em Engenharia Eletrônica e Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. É Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas de Sergipe (MPC/SE).

 

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