Artigo: Votar não é só apertar o botão da urna

28/09/2022 18:44

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: Votar não é só apertar o botão da urna

Votar não é só apertar o botão da urna. É também furar as bolhas da irreflexão que nos afastam de um futuro altruísta e coletivo. 

No mítico Reino de Odatse não havia eleições da maneira como estamos acostumados em nossa ainda juvenil democracia brasileira. Mas lá também eram feitas escolhas políticas, e nestas situações, Edutriv, o mais longevo e sábio soberano daquelas terras, sempre usava a mesma frase lapidar, quando participava do escrutínio de líderes para servirem ao povo. Dizia ele: “Escolher lideranças é muito menos sobre sentimentos e muito mais sobre onde se quer chegar”.

Trago esta frase não por acaso, mas porque efetivamente a nossa eleição de 2022 se aproxima, e minha percepção é a de que o voto, que deveria ser considerado uma das mais importantes decisões da vida de cada cidadão, ainda é aperfeiçoado, em muitos casos, de maneira displicente, irrefletida, expressando sensações e posturas que podem não ser as mais indicadas para a escolha de tão importantes lideranças políticas, como os parlamentares e os Chefes do Poder Executivo.

Tudo porque, como alertou Edutriv, muitas vezes o voto é decidido com base em sentimentos e impressões do eleitor, sem que se faça um real cotejo do passado, do trabalho, e principalmente do futuro que ele, candidato, pode proporcionar à população que ele vai servir (lembremos sempre que liderança política consubstancia um ato de servir ao público). Vota-se por pedido, por amizade, por simpatia, por reconhecimento, por gratidão, por troca de favores, por dinheiro, material de construção, promessa de emprego, por costume, por imitação, entre outras tantas possibilidades.

E não com base no projeto político, na capacidade de articulação, nos benefícios coletivos já trazidos e a trazer, no perfil gerencial, na fidelidade às posições políticas e à palavra dada, na coerência histórica, na vinculação do candidato à resolução dos grandes problemas nacionais, na sua reverência e homenagem à democracia, e, principalmente, com o compromisso de o eleito fazer o certo, escolher o caminho correto, mesmo em situações limite, em que esta rota (devida) seja mais complexa e não se revele como a mais fácil eleitoralmente. (Este é o grande teste do candidato, quando tem que escolher entre o seu futuro político e o futuro daqueles que ele representa...)

Sei que não vivemos em um mundo ideal (que talvez a magia, e a sabedoria de Edutriv possam ter criado em Odatse), e que efetivamente muitas pessoas, muitos cidadãos, simplesmente não têm a possibilidade de escolher olhando para o futuro coletivo. Exatamente porque, para estes, o hoje surge como uma ferida e urge com uma necessidade tremenda. Às vezes, aquela quantia, aquela cesta básica, aquela promessa, representa exatamente a única ponte para um lampejo de esperança; e a negociação ou gratidão do voto, o único meio de garantir um mínimo de dignidade no dia seguinte.

Não falo, portanto, destes sobreviventes heroicos do mar de desigualdade brasileiro, cuja única e certeira lógica é tentar fazer com que a caminhada continue. Esta reflexão é sobre aqueles que têm condições e a efetiva liberdade de fazer escolhas para que nossa estrada coletiva nos leve ao patamar merecido por todos nós brasileiros, seja nos Poderes Executivos, seja nos Poderes Legislativos. Argumento sobre aqueles que podem fazer opções eleitorais livres e que inclusive podem escolher libertar os menos desfavorecidos deste ciclo de reprodução de desigualdades terríveis, que ancora nosso país de qualquer possibilidade de voo mais alto, e que oprime e reprime parte de nossos cidadãos de uma plena expressão, consciencial, independente e sem quaisquer amarras de seus votos.

Mas, voltando ao pensamento de Edutriv, e em consonância com o que foi desenvolvido acima, que sentimentos seriam estes que, muitas vezes, levam o eleitor a um voto irrefletido? Como elencamos acima, seriam muitos, mas destacaremos apenas três, que me parece serem os mais representativos para o escopo deste artigo. Comecemos, portanto, pelo sentimento de pertencimento.

Realmente, muitos votam em bloco, de acordo com seu partido, sua agremiação. Formam torcidas, e escolhem seus candidatos e valorizam suas ideologias de acordo com sentimentos corpo e de pertencimento. O eleitor tem um lado (às vezes desde criança), e este lado pode lhe proporcionar acolhimento, possibilidade de interferir no processo político, e talvez, quem sabe, alguma vantagem institucional ou de agenda de posições de poder. (Um lado inoxidável, que determina de antemão o voto sem qualquer possibilidade de dúvidas...)

Sim, mas o leitor (e eleitor) atento deve estar se perguntando: qual o problema nisso? Ora, tal postura é legítima, e aceita moralmente. Apenas ressalvo, como veremos adiante, que isto pode tender a criar bolhas de iguais, e posturas maniqueístas (o famoso eu contra eles), que não favorecem o consenso coletivo sobre determinados pontos essenciais. Sem falar que limita o discurso e limita outros pontos-de-vista e candidatos que podem ser mais aptos e competentes. Não seria, portanto, a melhor postura porque, ao menos em termos ideais, a ideia é que se eleja o melhor líder ou representante, e não aquele que foi ungido por determinado grupo.

Um segundo sentimento que pode guiar o voto, é a emoção do encantamento, em que o voto é definido com base na capacidade de o candidato impressionar o eleitor, com sua beleza, seu carisma, suas palavras (que podem inclusive ser vazias de significado – meras promessas irrealizáveis). O eleitor fica extasiado com aquela figura e passa a ver suas posturas, discursos e ações como verdadeiras cornucópias de prosperidade e sucesso garantido, relegando ao plano de desconsideração, seus defeitos, contradições, e más ações. (E este fechar dos olhos, pode ser exatamente a chave para o insucesso...)

Ou, o exato oposto, a antipatia. Não voto naquele candidato porque ele é chato, não sabe olhar para a câmara e não fui com a cara dele. Ele não dança, não abraça crianças e não traz empolgação. Muito bem. E aí, mais uma vez, o que isto estaria errado? Qual o mal de escolher um candidato por simpatia ou antipatia?

Nenhum. Está na esfera de liberdade do eleitor. Mas lembro que, diferente de um namoro ou de uma amizade próxima, de regra o eleito conviverá muito pouco com o eleitor. Talvez eles nunca se encontrem novamente. Daí que sua simpatia ou antipatia, não devem ser levadas como régua para aferição da melhor ou pior candidatura. Até porque o marketing eleitoral funciona como um filtro severo, e muitas vezes, as propagandas eleitorais se desenvolvem em um universo paralelo, normalmente não tão próximos daquilo que minimamente poderia ser chamado de realidade.

O terceiro sentimento, que eu denominaria “eu não ligo”, seria aquele que se dá quando o eleitor, no dia da eleição, sequer pensou em quais candidatos merecerão seu voto. Daí, se o eleitor não resolver se abster, ou votar nulo ou branco, votará de forma aleatória, ou copiando o voto de alguém, ou votará no primeiro candidato que lembrar (e aí pode ser exatamente o número daquele candidato folclórico, que só fez galhofar durante a campanha), ou de acordo com a primeira carona que receber, ou consoante o primeiro santinho que encontrar.

Muito comum é votar simplesmente em quem supostamente todo mundo está votando, pois, ao menos assim, o eleitor pensa que acertou o voto. (Sendo que acertar o voto está mais para ficar feliz com o trabalho do eleito, do que adivinhar e votar no vencedor da eleição). Ou, praticar o pior tipo do não ligo, que é o daquele eleitor, que estaria apto a escolher (sem a exculpante da necessidade), mas que escolhe vender seu voto, subvertendo toda a lógica e todo o mérito que deveria revestir uma unção eleitoral. (O que se chama, com todas as letras, corrupção). Sendo certo que muitos dos vendedores, e compradores, depois ainda reclamam que não se pode confiar no processo político...

Poderia mencionar outros sentimentos, e outros tipos de eleitores (como o do contra – tudo está ruim, e ainda pode piorar...), mas para o escopo deste artigo já temos o suficiente para mostrar o sentimento que leva ao voto intuído, descompromissado, automático, fácil e fortuito, sem a ponderação necessária que uma escolha desta magnitude deve ter. Mas, como a querida leitora e o querido leitor já perceberam, de pouco adianta diagnósticos sem uma proposta de solução. Queixa sem ação, é apenas reclamação paralisante amarrada em torno de si mesma. Então, neste contexto, o que fazer para evitar um voto baseado em um processo automático, em um sonho, em um santo que não bate, ou em uma simples alienação da capacidade eleitoral ativa?

Diria que precisamos deixar de imaginar o voto como uma fotografia daquele instante, e passar a enxergá-lo como o filme de uma promessa que terá repercussão pela vida inteira. Ou seja, precisamos imaginar o processo eleitoral como um ciclo em que somos chamados de tempos em tempos, para eventualmente corrigir seus desdobramentos com vista a que ele nos leve para onde queremos chegar. (Tudo porque nossa vida em sociedade democrática é escrita em capítulos na duração de cada mandato; e finalizado o ciclo, somos chamados, a opinar sobre os rumos que a história deve tomar. Se não ajudarmos a escrever a história, do seu final, não podemos reclamar...)

Daí o retorno ao início do artigo e à frase de Edutriv, de que a questão da escolha e do voto, não é de sensação, mas de ação e de destino (no sentido de onde se quer chegar). Desta forma, quando votamos, controlamos (ou deveríamos controlar) o desenrolar da atuação do processo político, para adequá-lo ao que queremos como produtos deste processo no futuro. E não podemos ser este elemento de controle/correção de rumos, fazendo escolhas descompromissadas e aleatórias de qualquer candidato. Não. Como vimos acima, o voto se encaixa na moldura de construção do futuro (que devemos protagonizar) e da escrita da nossa história.

Deste modo, o bom voto tem que advir da reflexão. Da identificação e diagnóstico de onde estamos, do vaticínio de onde queremos chegar e da escolha do caminho que temos que trilhar para chegar lá. Valendo sempre salientar que, onde estamos, já sabemos: vivemos em um país de grandes potencialidades, mas de enormes problemas, como a imensa desigualdade social e os déficits tremendos em educação e saúde. Onde queremos chegar, parece já haver certo nível de consenso, pelo menos em nível de discurso: queremos desenvolvimento, igualdade, paz, dignidade e direitos sociais para todos.

E o que fazer para chegar lá? Estou muito longe de ter uma solução. Mas arriscaria dar dois palpites que talvez encaminhem tendencialmente uma solução. O primeiro, de que a construção de qualquer plano de desenvolvimento coletivo, tem que ter por base, como adiantamos lá no início, ultrapassar as bolhas de pensamento sectárias e trabalhar na busca de consensos. (Lembremos que a lanterna foca em um só local, e a lâmpada livre de barreiras, é capaz de iluminar todo o ambiente...)

A experiência e a história demonstram que em seara de argumentos opostos, a verdade e o sucesso dificilmente estarão integralmente em apenas um dos lados. Tudo porque é da dialética que se forma a síntese e o consenso, e serão estes consensos pontuais (como a necessidade de erradicação da desigualdade e do investimento em educação, por exemplo) que nortearão nosso caminho para o futuro. (Até porque um requisito para o real sucesso é não cometer os mesmos erros do passado. E se o país está dividido, vemos equívocos em um lado, e no outro também...)

E o segundo palpite é o de que todo e qualquer projeto coletivo, para dar certo, tem de ter uma premissa altruísta, a começar pelo seu líder, mas que tem que perpassar todos os eleitores. Tudo porque, se cada um se restringir a buscar seu benefício individual; restaremos todos erráticos sem sinergia, harmonia, colaboração, eficiência, eficácia e efetividade (estímulos opostos se anulando eternamente...)  E o benefício individual que às vezes se ganha elegendo uma má representação, certamente se perderá no tempo na vastidão de problemas estruturais que nossa sociedade conclama e reclama.

Precisamos, portanto, votar com reflexão e altruísmo, e com um plano de ação em mente, já preparado para ser cobrado daqui a quatro anos. Sendo certo que votar não é só apertar o botão da urna. É também apertar e furar as bolhas de irreflexão que, em última análise, separam apenas teimosias e ideias fixas. Tudo porque, para um futuro altruísta e coletivo, não basta dar as mãos para quem está do lado. Precisamos das mãos daqueles que estão do outro lado da rua, da cidade, do estado, do Brasil. (Para todos juntos transformarmos a atual realidade/desigualdade).

Lembrando sempre, e citando mais uma vez Edutriv: “o futuro auspicioso nunca vem por acaso. Ele não desce dos céus como um milagre. Ele vem em decorrência de muito labor. Trabalho em forma de cobrança dos que escolhem, trabalho em forma de comprometimento dos escolhidos. União em forma de muito trabalho de todos nós.

 

João Augusto Bandeira de Mello é Pernambucano e sergipano, possui graduação em Engenharia Eletrônica e Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, e mestrado em Direito pela Universidade Federal de Sergipe. É Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas de Sergipe (MPC/SE).

 

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