Garantismo Penal e a Razão no Processo Decisório da Modernidade - Parte 3

10/07/2019 19:55


Garantismo Penal e a Razão no Processo Decisório da Modernidade - Parte 3

A concepção moderna trouxe em seu bojo a ideia do contrato social para o indivíduo dotado de razão e liberdade. Nesta toada, surge o Estado para resolver problemas sociais, criar e aplicar sanções. Coadunando-se com essa premissa, oriunda da modernidade, necessário se faz a observância da legalidade geral e penal, sem olvidar dos preceitos esboçados numa carta de cunho constitucional. Anthony Giddens define a modernidade, em sua obra “As Consequências da Modernidade”, como um estilo, costume de vida ou organização social que emergiu na Europa a partir do século XVII e que, posteriormente, se tornou mais global em sua influência. Para ele os homens são inseridos na história como seres, tendo um passado definitivo e um futuro previsível.

É certo que o ser humano, em sua condição mais pretérita, no estado mais natural e primitivo, vivia sem o aparato de qualquer aparelho ou aparelhamento que lhe desse garantia ou segurança nas suas relações interpessoais. Tudo que emergia com o condão de lhe impor dificuldade era resolvido por meio da força bruta, pela sobreposição do mais forte e submissão do mais fraco. Nessa fase evolutiva, o ser humano estava à mercê do arbítrio alheio, mas gozava de plena liberdade, ainda que ameaçada a todo e qualquer tempo. Eram tempos de beligerância.

O modo e as premissas que guiam a percepção da relação estatal com o indivíduo vêm sendo repensados desde a modernidade (que surge com a razão humana). Na segunda metade do Séc. XVIII – Revolução Francesa X Revolução Americana – surgiram as bases limitadoras do Estado (isto quanto ao Direito Penal).

Visando maiores garantias e consecuções de fins comuns, o ser humano despoja-se de parte de sua individualidade, de sua liberdade, para criar um ente chamado Estado, aquele que seria o depositário da confiança de todos e que, em nome da coletividade, faria a consecução do bem comum e livraria todos das usurpações e submissão arbitrária do homem pelo homem, via instrumento da força. Firmou-se, pois, o Contrato Social, teorizado por Jean-Jacques Rousseau, saindo o homem do seu estado natural para o convencional.

Politicamente, o Estado é a expressão de uma condição do Contrato Social, não apenas como um fato histórico. Para Kant, o contrato é um a priori, não está vinculado a nenhuma experiência, a nenhum dado histórico.

Rousseau defendia a ideia de democracia direta em que a razão é o guia do homem. Para ele o homem abdica de sua liberdade e contrata a criação do Estado, porém não abdica de tudo para o Estado, reserva algo para si. Do ponto de vista da ciência política, o Estado é oriundo de um consenso. O Estado foi concebido com o objetivo número um de garantir a segurança e bem-estar de todos os cidadãos. Foi em 1603, com o Livro V das Ordenações Filipinas, que surgiu o primeiro Código Penal.

O Direito Penal aparece quando se percebe a diferença entre Direito Natural e o Direito Positivo. Sabe-se que o direito penal é formado por um conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, levando em consideração os fatos puníveis e as medidas aplicáveis aos infratores. Cabe ao Estado, como mantenedor da ordem e paz da coletividade, descrever tais condutas como infrações penais (tipificação) cominando, em consequência, as respectivas sanções, e estabelecendo as regras necessárias à sua aplicação. Tudo isso também para garantir a liberdade do cidadão, mesmo que tenha ou não cometido um delito, visto que o perigo de viver numa guerra eterna não satisfaz a ninguém.

Então, o Estado, como ente soberano, dotado das abnegações pessoais e jungido ao bem comum, passou a legislar e jurisdizer, deixando de lado a possibilidade da vingança privada, instituindo, em substituição, um sistema legal que dispõe sobre os crimes, as penas e a punição das pessoas infratoras.

Em suas lições, Beccaria, ao explicar o direito soberano de punir os delitos, afirma com clareza que as punições estatais recaem em função da “necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares” e que “tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e inviolável é a segurança e maior a liberdade que o soberano dá aos súditos”.

Neste passo, o Estado chamou para si a responsabilidade sobre o direito de punir como cumprimento de uma vontade geral, a fim de que ninguém ficasse ameaçado pelo desarrazoado arbítrio alheio, mas que a liberdade de todos estivesse confiada, de forma indistinta e impessoal ao Estado. Seria a pena, pois, o meio de impedir que o infrator venha a causar novos danos aos concidadãos e o meio de represália (exemplo) para outros que porventura queiram delinquir.

Por seu turno, Hans Achenbach pondera: “Indiscutible es la imputación individual, factor constitutivo para la fundamentación de la pena, consecuencia jurídica específica, sólo puede determinar en cuanto al contenido a partir de su relación com la pena misma”.

Diante de tais constatações, o Estado não consegue dar respostas satisfatórias a essas mudanças estruturais, sejam de cunho positivistas ou sociológicos. Como ensina Luís Roberto Barroso, o mundo perpassou-se por diversas escolas de pensamento, a saber: formalismo, reação antiformalista, positivismo e de volta aos valores.

 Caracterizou-se o formalismo pela concepção do mecanicismo do Direito cuja atividade interpretativa alijava-se da função crítica. Nele, a crítica dava lugar à subsunção do fato à norma, como fruto de pura submissão legal, posto que a norma derivava da vontade geral expressada pelos seus legítimos representantes (Poder Legislativo).

No modelo supra proposto, o exegeta encontrava-se restrito a uma interpretação literal do texto legal, adequando, de forma aritmética, o fato à norma, buscando coadunar seu mister à mens legis, ficando o julgador aos lineares ditames da lei fria.

Em contraponto, a reação antiformalista visava a quebra dessa ordem seca, retilínea e formatada para dar lugar a uma interpretação que alcançasse a finalidade da ordem jurídica, como defendido por Rudolph Von Ihering, para o qual o Direito deveria servir para os fins sociais, antes mesmo que aos conceitos e às formas.

O positivismo vem com a ideia de separação do Direito e da Moral, do que é lei oriunda do processo legislativo e do que é a lei natural, chegando, inclusive, a negar a existência o próprio direito natural como instituto jurídico, levando a crer que apenas o positivado (lei escrita) poderia ser considerado direito.

Nessa linha, desenvolveu-se o pensamento no sentido de que o juiz, ao proferir sua decisão, assim o fazia por um ato de escolha dentre as possibilidades que a norma lhe oferece, não estando mecanizado, engessado, tão alinhavado a uma interpretação estritamente linear do texto legal, de forma aritmética, como propunha, v.g., o formalismo.

Expressando essa ideia, Hans Kelsen, na Teoria Pura do Direito, porpôs que o ato de jurisdizer não seria apenas um ato de conhecimento, de simples aplicação do conteúdo legal ao fato concreto, mas um somatório do ato de conhecimento com o de vontade, que se revela na escolha de uma das inúmeras possibilidades de aplicação da norma ao fato concreto que se lhe põe para julgamento, em defesa das suas ideias, de que havia amplas possibilidades de aplicação do Direito, e não apenas uma.

Nessa senda, a Escola Kelseniana abraça a tese de que, ao se interpretar uma determinada norma, é sempre concedido ao exegeta, ao hermeneuta, ao aplicador do Direito, uma margem, maior ou menor, de liberdade para que, dentro do quadro ou da moldura legal, possa aplicar a norma, fazendo uma mescla entre o ato de conhecimento e o ato de vontade, como fim de uma política de Direito.

Não se trata, pois, de dizer que a norma possui apenas um só sentido, uma resposta pronta e acabada, de via única. Ao contrário, a atividade hermenêutica vai validar tantas quantas possíveis sejam as vias a serem percorridas dentro da moldura legal. Nega-se por completo que a norma possua um sentido singular, que seja mono, com severa exclusão de outros materiais e legalmente possíveis. Mas se afirma que a norma geral possibilita esse prisma de viabilidades dentre os quais será produzida a norma individual dentre as possíveis normas individuais adstritas ao quadro legal aplicável ao caso.

No que diz respeito à volta aos valores, esta começa a ganhar corpo com a derrocada do positivismo jurídico e da supremacia da lei, após os incidentes do holocausto, do fascismo e do nazismo.

De tudo quanto ocorrido, o mais catastrófico é que as premissas da Teoria Pura do Direito, criadas pelo citado jus filósofo judeu, veio por conferir validade ao próprio sistema nazista, que o perseguira depois, posto que o entendimento de Kelsen era o de que há Direito independente de sua legitimidade.

Assim, perfilhando essa tese, para o Estado Totalitário Nazista, bastava que o ordenamento jurídico amparasse suas ações em leis para que os absurdos [hoje] cometidos fossem legais, eis que, no purismo da tese kelseniana, todo Estado é de Direito, independente da ordem jurídica estabelecida, restando apenas que a norma seja legítima ou justa, posto que o Direito é uma atividade do Estado.

O pós-positivismo, por essas razões, traz os valores de volta ao centro das discussões jurídicas, excluindo-se da racionalidade purista do positivismo. Neste contexto, decorreu, em boa parte, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que disseminou valores como o da dignidade da pessoa humana, da “normatividade” dos princípios, da argumentação jurídica e da racionalidade prática.

Não se pode hoje pensar que, por ser o Direito uma atribuição estatal, toda e qualquer lei, desde que tenha vigência e eficácia, poderá indistintamente valer dentro do ordenamento jurídico, mormente quando afronta absurdamente direitos que são inerentes à condição humana de existência, sem os quais nos tornamos coisa, um mero instrumento de realização do Poder pelo Poder, sofrendo as peias de um Estado que não representa a vontade dos administrados, verdadeiros titulares do Poder, mas, em contrassenso, utiliza-se do meio idôneo (processo legislativo) para a criação e validação de atos ‘legalmente possíveis’ conquanto órfãos de dignidade e legitimidade, vez que não realizam a verdadeira Justiça.

Pensar diferente disso é validar as atrocidades cometidas pelo regime militar no Brasil, ao editar os Atos Institucionais, sem sequer haver a validação do Congresso Nacional (Controle do Poder Executivo), no afã de exercer o poder de forma cada vez mais ampla e sem controle de quem quer que seja, em nome de um fim “maior”: manter a ordem. Na verdade, os limites do direito de punir encontram amparo em alguns princípios que vingaram durante a Modernidade. De forma perfunctória, podem ser apresentados três princípios garantistas que delimitam o poder punitivo do Estado.

O primeiro, o Princípio da Estrita Legalidade, seria a única forma de prevenir delitos racionalmente, indicando preventivamente os tipos penais em sede de ameaça legal, ou seja, só podem ser prevenidas e combatidas as ações previstas e não aquelas imprevistas, mesmo que danosas.

O segundo, o Princípio da Materialidade dos Delitos, onde seria possível prevenir delitos somente quando as ações fossem expressadas por comportamentos exteriores, e não em estados de ânimos interiores, ou situações subjetivas, como maldade, periculosidade, infidelidade, imoralidade, anormalidade psicofísica ou similares.

E o terceiro, o Princípio da Culpabilidade e Responsabilidade Pessoal, onde as ações passíveis de prevenção por meio da ameaça penal são somente aquelas culpáveis e voluntárias, e não as inculpáveis decorrentes da involutariedade do caso fortuito, da força maior ou ato de terceiros. A culpabilidade, nesse contexto, trabalha com a ideia de dolo ou culpa, vedando a responsabilidade penal objetiva. A Constituição Federal ao estabelecer em seu art. 5º, XLV e XLVI, que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, consagrou o princípio da pessoalidade que impede a punição por fato alheio como pode ocorrer em outros ramos do direito.

Tais parâmetros expostos acima são essenciais para se evitar o arbítrio por parte do Estado, posto que os atos e as práticas da Administração devem estar em compasso com os desígnios de uma sociedade, decorrentes de um contrato social objeto da criação do Estado.

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