Artigo: Mufasa, Hakuna Matata e a Missão do serviço público

25/07/2019 14:09


Artigo: Mufasa, Hakuna Matata e a Missão do serviço público

Proponho desde logo um exercício ao caro leitor: puxar pela memória, e lembrar da pessoa mais carente de meios materiais que você conhece. Se não se lembra de ninguém nesta situação específica, vale uma lembrança do facebook, de um vídeo do whatsapp, de uma reportagem da televisão, ou até tomar emprestada a experiência de um amigo.

De posse da lembrança, imagine agora suas necessidades, seus sonhos (que muitas vezes se resumem a refeições três vezes ao dia, ou a um teto para dormir à noite...), e o que pode ser feito por ela. Guarde este pensamento, será útil mais adiante.

Feito registro inicial, vamos agora mais diretamente ao título, que, consoante o sucesso do momento, tem relação com o filme “Rei Leão”, obra da Disney, lançada inicialmente em desenho animado, e que agora ganhou uma versão em live action (formato de filme real); e que tem feito muito sucesso para os públicos de todas as idades (eu e minha família gostamos muito).

No filme (procurarei não dar muitos spoilers, apesar de a história ser muito conhecida), o jovem leão Simba depara-se, em certo momento de sua vida, com uma encruzilhada – um verdadeiro ser ou não ser shakespeariano: retornar à sua família, e assumir o legado de seu pai, Mufasa; ou, Hakuna Matata:  permanecer na sua vida simples e sem maiores preocupações, aproveitando cada dia, em pequenos prazeres e divertimentos, com seus grandes amigos, Timão e Pumba.

Seguir os conselhos de Mufasa, significaria adotar uma perspectiva kantiana de seguir um dever: de obedecer a norma de vida de que todo príncipe tem uma obrigação para com sua linhagem e para com seu povo. Sendo que, no caso do filme, os Reis dos Animais tinham a missão precípua de garantir a continuidade do Círculo da Vida, ou seja, a sustentabilidade ambiental daquele ecossistema. Neste contexto, caberia a Simba asseverar que os recursos naturais daquele território fossem usados com sabedoria, de modo que carnívoros tivessem caça, herbívoros tivessem vegetação para se alimentar e a matéria orgânica de todos, servisse para que a vida continuasse seu caminho...

O outro lado do Ser, significaria permanecer no Hakuna Matata, ou seja, seria seguir uma ideologia existencialista-niilista, de que cada um é livre para estabelecer o seu sentido na vida, inclusive no que pertine a não adotar sentido algum. Viver, dia após dia, sem laços e amarras com deveres previamente estabelecidos, mantendo apenas o compromisso de harmonia com os semelhantes e com a natureza. Existir sem angústias em relação ao futuro (e ao sofrimento que existe, mas que não estava ali presente), e com profunda ênfase no prazer momentâneo.

Não vou dizer o caminho que Simba escolheu, já que, hoje em dia, uma das infrações éticas mais relevantes é contar o final de algum filme ou série. Mas trago esta encruzilhada vivida por ele, pois este é um dilema que vivenciamos dia-a-dia, em termos de serviço público (e aí, justificamos a última parte do título). Como assim?

Ora, é cediço que o servidor público efetivo tem um regime jurídico diferenciado, que engloba características diversas dos trabalhadores da iniciativa privada, dentre as quais, resumo as mais relevantes: a) ingressa por concurso público; b) tem estabilidade relativa no emprego, ou seja, não pode ser demitido sem uma causa definida em lei; c) contribui mais para a aposentadoria, e, por isso, tem, em regra, proventos de inatividade maiores.

Sendo certo que estas características, absolutamente pensadas para que o servidor público seja recrutado de modo justo e imparcial, e tenha toda a tranquilidade para desempenhar seu mister de servir à sociedade, com profissionalização, tranquilidade e independência; podem, em alguns casos, serem vistas de um modo míope e totalmente desviado do que pensou o legislador constituinte.

Isto porque, aquilo que foi pensado exatamente para garantir uma afetação do servidor ao interesse público, pode ser transmutado em um exato inverso, da seguinte forma: 

  1. a) com a aprovação no concurso sendo vista não como um meio de ingresso no serviço público, mas sim como uma garantia inarredável de participação nas competências estatais; 
  2. b)  a estabilidade representando um salvo conduto para olvidar deveres e obrigações em relação à coletividade; 
  3. c) a aposentadoria sendo vista como um direito patrimonial, sem dever de contraprestação em termos de contribuição, e que, em alguns casos, pode ser exercida desde já na ativa...

Ou seja, muitas vezes apresenta-se ao servidor público concursado uma encruzilhada para sua consciência: ou ele cumpre o dever subjacente à sua função, que, em termos constitucionais, supera o mero desempenho de uma série de tarefas diárias, e compreende estar atento à transcendência do seu trabalho, estando sempre comprometido com a própria eficiência e eficácia da esfera da Administração Pública à qual ele faz parte. Ou seja, sempre garantindo e estando intimamente vinculado à plena consecução do interesse público.

Ou este servidor sucumbe a simplesmente buscar a sua plena utilidade individual, não estando comprometido com o desenvolvimento de sua total potencialidade no desempenho de suas funções; estando insuficientemente vinculado à missão do serviço público. (Sendo que esta insuficiência não se revela apenas em ser omisso em relação às horas trabalhadas. A omissão pode estar também naquele que apesar de desempenhar formalmente sua função, não se compromete com os resultados de seu órgão ou entidade, e nem se coloca à disposição de corpo e alma para o desenvolvimento social do ente ao qual esteja vinculado.

São escolhas individuais: a que cada servidor deve fazer, a que Simba fez. E como diz a ironia, o problema das consequências, é que elas vêm depois. E, muitas vezes, quando a escolha é desditosa, os seus efeitos vêm de forma cumulativa, depois de muito tempo decorrido. (Vide as grandes mazelas do serviço público não vêm de hoje...)

De toda sorte, voltando ao primeiro parágrafo deste texto, saber que todo o desempenho do serviço público está estritamente vinculado a garantir uma vida melhor, a dar uma esperança maior de educação e saúde, a concretizar os mínimos sonhos daquela pessoa que carente que pensamos no início do texto; tudo isto dá uma dimensão relevante da importância e da responsabilidade da escolha a ser feita. (Escolha que deve homenagear o imenso privilégio e a imensa oportunidade de poder servir o público, e colaborar diretamente com a construção de um mundo melhor).

 

 

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