Garantismo Penal e a Razão no Processo Decisório da Modernidade - Parte final

07/08/2019 19:47


Garantismo Penal e a Razão no Processo Decisório da Modernidade - Parte final

O idealizador da Teoria do Garantismo Penal, Luigi Ferrajoli, aponta que o Estado será mais ou menos garantista o tanto quanto adotar, com maior ou menor aceitação, a teoria em suas Constituições e Codificações.

Nesse contexto, o Brasil se encaixa como modelo de Estado de direito social, pois veda ações estatais que restrinjam a liberdade dos cidadãos [ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante...] ao tempo em que garantem prestações positivas por parte desse mesmo Estado [o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados...].

Outro ponto diferente apontado pelo jus filósofo está em que o garantismo, embora tenha o condão da juridicidade, traz consigo, ao lado dos aspectos formais e substanciais, o que até então estava alijado do processo de avaliação jurídica. Em Ferrajoli encontram-se os pressupostos formais e substanciais presentes na validação do processo de construção da norma jurídica, porque configura maior grau de legitimidade a esta. Não basta só que uma norma seja elaborada e esteja de acordo com os procedimentos formais alinhados previamente pelo ordenamento jurídico. Isso é o que reflete a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen.

Na teoria kelseniana, a validação de uma norma é encontrada em outra norma hierarquicamente superior e temporalmente anterior. Deveria a novel legislação estar concorde com as balizas formalizadas pela lei superior pretérita. É um sistema de derivação contínua, na qual a posterior valida a anterior. Como já se disse, não se busca a justeza da norma jurídica, mas tão somente se era o direito posto (lei) e se advinda daqueles que poderiam produzi-la, ou seja, da autoridade competente, à qual era dado o poder de competência normativa para criar essa expressão de vontade geral. É nesse ponto que Luigi Ferrajoli acrescenta o plus da sua teoria, o valor, a materialidade e a substancialidade. Não importa só se a norma obedece aos aspectos formais exigíveis até então. É preciso que ela tenha um valor em si e respeite os valores que compõem o ordenamento jurídico vigente. Eis que, desta forma, haverá solo fértil para o garantismo penal, pois não basta ser lei oriunda do processo legislativo, mas, ser lei substancialmente atinente aos valores defendidos e consagrados no sistema constitucional vigente. Enquadramento formal é pouco, deve-se ter o embasamento substancial, essencial como pressuposto de validação. Mas Ferrajoli acrescenta um novo elemento ao conceito de validade. Para ele, uma norma será válida não apenas pelo seu enquadramento formal às normas do ordenamento jurídico que lhe são anteriores e configuram um pressuposto para a sua verificação. Supera-se o modelo formalista e vai-se ao encontro do elemento substancial do universo jurídico.

Daí porque se chama a Teoria do garantismo penal de um modelo normativo do direito no qual há um sistema de limites à autoridade punitiva com o fito de conferir maior garantia de liberdade. Não se constitui em um só ato, em um só diploma legal, mas numa ideia que deve ser adotada pelo Estado em todo o seu ordenamento jurídico, principalmente o constitucional. É, em resumo, uma garantia jurídica para se asseverar a responsabilidade e a aplicação da pena.

Aqui, a lei inferior é válida quando formalmente realizada, emitida por poder competente, em procedimento previsto, e, máxime, quando não violou a Constituição Federal substancialmente, essencialmente. Não se viola uma lei superior só na sua forma, mas também na sua essência.

Outro ponto de destaque está em que, ao contrário do que apregoou Beccaria para justificar o direito soberano de punir os delitos “na necessidade de defender o depósito da salvação pública das usurpações particulares”, Ferrajoli propõe o cognitivismo processual para garantir a verificação da verdade, da forma mais justa e segura em relação ao processo, na busca da verdade (sempre relativa) e afastamento ao máximo do erro (imanente à atividade humana).

Disso se deflui que quanto maior a vontade do Estado em praticar o processo de conhecimento, menor será o de estigmatizar, de punir por punir, pois este exercitará as garantias penais ao máximo e reduzirá as chances de erro, fazendo acontecer a verdadeira justiça, através do devido processo penal de mínima incidência e máximas garantias, eis que o processo penal não é um meio de pura repressão, mas de acertamento de fato determinado como crime e de sua autoria.

Nesta esteira, pode-se dizer com Luis Alberto Warat, que a teoria do delito fornece o limite das interpretações legitimáveis. Sem a teoria do delito “[...] não se pode expressar uma plenitude significativa para nenhum delito, eis que as normas jurídicas não têm, por si só, um sentido pleno.”

Desta forma, a produção de uma ideologia legitimadora do poder punitivo, baseada no garantismo, acompanha, desde o começo, a história do Direito penal moderno, como observa Alessandro Baratta, no marco de um projeto de “Direito Penal”.

Cumpre dizer que a composição (modernidade, razão penal, constituição e arbítrio) traz um mapeamento filosófico com fundamentos circundantes no aspecto do garantismo ou não do direito penal. A modernidade trouxe consigo ideais de progresso, trouxe importantes valores de inspiração humanística. Em seu bojo foram construídos elementos determinantes formados ao longo de sua tradição (Revolução Francesa, quebra do absolutismo, ideias iluministas, ascensão da ciência, declarações de direitos, formação do Estado, ascensão da burguesia, expansão do liberalismo econômico, controle democrático do despotismo político, consolidação do positivismo jurídico) que influenciou as sociedades que sucederam a este marco histórico, como também trouxe profundas repercussões no mundo do direito em geral, precipuamente do direito penal.

O direito penal moderno consubstanciou uma promessa de racionalização do poder punitivo do Estado como garantia dos direitos individuais do acusado. Na verdade, uma promessa de segurança jurídica, como uma concepção garantidora (cujo ingrediente fundamental é a dicotomia Poder do Estado em face do indivíduo).

 Diante do exposto, utilizando-se da inteligência do Doutor professor Carlos Alberto Menezes, conclui-se que a experiência jurídica se mostra desapontada com a promessa de segurança jurídica que um dia a razão penal prometeu ao indivíduo, dotado de razão e subjetividade, cuja razão moderna contempla-o como aquele que fez a passagem da dependência para a emancipação, tornando-se capaz de responsabilidades (direitos e deveres). Reconhece-se, então, o caráter limitado do sistema penal que apresenta legitimidade com esteio na garantia da legalidade.

Em última análise, o Direito Penal passou por diversas transformações e será passível de outras, conforme o acompanhamento histórico da evolução social. Não seria plausível abolir o Direito penal, nem abolir as prisões. Entretanto, deve-se garantir a sua utilização mínima, com base na legalidade e demais garantias amparadas pela Carta Magna de 1988. Deve-se ainda promover um profundo debate que envolva não somente os que fazem e aplicam as leis, mas a sociedade como um todo, como receptora de todo o sistema que envolve o ordenamento jurídico, no sentido de assegurar aos cidadãos uma razoável garantia jurídica que afaste os mesmos de qualquer tipo de arbítrio por parte do Estado.

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