ARTIGO: A RESPONSABILIDADE DA LIDERANÇA E A CAMINHADA PARA O ABISMO

28/02/2020 20:50


ARTIGO: A RESPONSABILIDADE DA LIDERANÇA E A CAMINHADA PARA O ABISMO

O mecanismo da memória é interessante. Não escolhemos exatamente o que queremos lembrar. A lembrança que fica é resultado de um algoritmo que mescla um ato de vontade – quero decorar a tabela periódica, a conjugação do verbo ir, etc; com um componente emotivo, geralmente vinculado à emoção que sentimos naquele momento – uma grande alegria, uma tristeza marcante, uma situação engraçada, um susto.

Neste sentido, pela emoção envolvida, lembro com clareza, um voo de Recife a Brasília, quando eu retornava para meu curso de formação como Fiscal de Contribuições Previdenciárias do INSS (engraçado, eu lembro mais deste voo, do que minha primeira viagem de avião aos doze anos).

Naquela época, para mim, viajar de avião ainda não era um costume. Tinha viajado de avião umas cinco vezes até então (eu já estava com 24 anos de idade, bem diferente de minhas filhas que viajam de avião para lá e para cá desde que praticamente nasceram). A rota era regular, a Companhia Aérea era de porte, e a aeronave era grande. O único detalhe é que aviões, iguais ao que eu estava voando, tinham tido problemas/acidentes recentemente. Esta era a razão da apreensão.

O voo decorria tranquilo. Desde sempre tenho conhecimento racional de que acidentes aéreos são raríssimos e que estatisticamente viajar de avião é muito mais seguro do que o transporte rodoviário. Mas, como a psicologia e a neurociência demonstram hoje, nosso cérebro tem dois sistemas: o sistema automático e o reflexivo, sendo que, em situações de stress e medo, o sistema automático assume, e o ser humano age de acordo com suas intuições e emoções. 

Tive esta noção quando o avião passou por uma turbulência forte. Neste exato instante, o sistema automático tomou conta; toda a racionalidade das estatísticas foi embora, e somente ficou o corpo nervoso, navegando em descargas de adrenalina, pensando o pior...

 A único aspecto positivo foi que, ao olhar em volta, vi as aeromoças e comissários de bordo focados, mas até certo ponto descontraídos – sinal de que não havia maiores problemas. Este breve alívio que não durou muito, pois a turbulência aumentou e eu vi a equipe de bordo correr para os seus assentos, na minha visão, apreensiva. Não sei se o medo já havia tomado conta, mas senti as aeromoças efetivamente assustadas, desnorteadas e respirando tentando controlar o medo. 

Tal cenário exasperou o início de pavor que eu já sentia. Aqueles que, em tese, sabem diferenciar o corriqueiro do extraordinário; que foram treinados para manter a calma, e não pensar no pior; aqueles que já viveram esta situação muitas vezes, e que foram formados para liderar; estavam efetivamente apreensivos. Aí, então, não vou mentir: o que era espanto, tornou-se perplexidade, e o que era preocupação tornou-se instinto de sobrevivência. Seguiram-se os pensamentos sobre a finitude, as orações, as promessas. O coração acelerando cada vez mais rápido, parece que assumindo o comando de tudo, e a racionalidade, longe, longe... 

Mas, como vocês podem imaginar, já que lhes escrevo, e graças ao misericordioso Deus, não houve maiores incidentes. A turbulência do jeito que veio, foi. Todos se recompuseram aos poucos; e como não era hora de ninguém ali, chegamos em Brasília em paz.

Mas o que este fato tem a ver estritamente com a responsabilidade da liderança, na percepção do mundo? Parece-me que o link é claro, mas desenvolvamos mais para que o entendimento seja mais enfático e profundo. Para tanto, falemos também de heurísticas.

Com efeito, em ciências comportamentais e neurociência, heurísticas são processos cognitivos que utilizamos para simplificar tomadas de decisão, onde parte do arcabouço informacional das variáveis envolvidas é desprezado ou substituído, no sentido de facilitar a escolha a ser feita.

Ou como diz o grande mestre Daniel Kahneman, heurística é substituir uma pergunta em relação à qual você não sabe a resposta, por outra pergunta, que talvez você saiba responder.

Fazemos isso corriqueiramente. Por exemplo, eu não sei se determinado restaurante é bom, mas avalio que ele deve ser em função de o mesmo estar sempre lotado. Ou, não sei se determinado carro é confiável, mas julgo que o seja, por ser o mais vendido. Não sei se Fulano é honesto, mas o tenho como tal, porque ele é um religioso praticante, e assim por diante.

No caso do avião, eu não sabia se a turbulência era grave ou não. Eu medi a sua gravidade em função da resposta das aeromoças e comissários de bordo. Uma maneira aproximada de entender a situação real. 

Muito bem, e a responsabilidade das lideranças?

Ora, não é preciso dizer que o mundo é extremamente complexo (falaremos mais disto em futuro artigo). E não há dúvidas também que neste mundo de informações ambíguas, fluidas, desencontradas e muitas vezes ininteligíveis, precisamos de um marco para embasar as nossas convicções e nossas percepções em relação ao mundo.

Usamos como marcos: a opinião de órgãos de imprensa imparciais, posicionamento de professores e intelectuais respeitados, de pessoas mais experientes, de amigos e parentes sensatos. E sem sombra de dúvidas, utilizamos também como referência, lideranças políticas e instituições públicas; o que é muito natural, já que no processo democrático, estas são naturalmente eleitas ou estabelecidas para liderar, inspirar, apontar rumos, servir de farol para iluminar o futuro.

E se estas lideranças falharem no processo comunicativo? Desinformando, por exemplo, em vez de informar; falseando verdades; prometendo o que não pode cumprir; instigando ódio, em vez de tranquilidade? É o pior dos mundos, pois, como dito, nós cidadãos não temos condições de a cada momento envidar uma reflexão histórico/ideológica/econômica/ambiental/jurídica/filosófica sobre cada assunto a ser pautado, para escolher a melhor conduta em termos individuais e sociais. 

Para isso, confiamos nas instituições e nas lideranças, que existem exatamente para estabelecer os pontos de partida de confiança em nossos processos decisórios e de escolhas. E se os líderes e instituições falham em nos dar esta orientação, este porto seguro inicial de pavimentação de nosso futuro desaparece, e evidentemente as chances de que tenhamos todas as informações necessárias para que possamos construir, a partir de nossas escolhas, uma sociedade justa e próspera, diminuem cada vez mais...

Por tudo isso, a liderança, seja pessoal ou institucional, tem que saber que, tal qual em um avião, confiamos nela para que o voo seja seguro. Porém, se esta confiança e tranquilidade não se estabelecem, o que estatisticamente era para ser um céu de brigadeiro, passa a ser uma alta aposta no desconhecido. E a chance de termos grande percalços, e estarmos caminhando aceleradamente para um abismo, passa a ser muito, mas muito grande...

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