Artigo: Minha querida avó usava máscara, o aprendizado do dever de alteridade e a salvação do outro

03/04/2020 18:13

João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: Minha querida avó usava máscara, o aprendizado do dever de alteridade e a salvação do outro

 Minha avó paterna não era dada a efusivas demonstrações de carinho ou alegria. Lembro dela como uma pessoa circunspecta, de algum modo tensa, e absolutamente atenta a todo o que a cercava. Um dos motivos, creio eu, do semblante sempre preocupado, talvez tenha sido a herança dos tempos extremamente difíceis que se seguiram após o falecimento repentino de meu avô, ainda muito jovem, deixando minha avó com o encargo de chefia da família, e tendo que criar três filhas e um filho, em escadinha, com idades entre catorze e seis anos. (E considerando que todos se formaram, com extrema retidão e cultura, e dentre eles havendo alunos laureados, dois escritores e servidores públicos de carreira, entendo que este trabalho foi muito bem desenvolvido).

Outro motivo, que decorre do primeiro, era que, apesar de uma certa rigidez no trato, minha querida avó Nadir era uma pessoa indubitavelmente amorosa, cujo amor não era traduzido em mimimis (como se diz hoje em dia), mas sim em um dedicado cuidado com todos da família, notadamente os netos. 

Cuidados revelados de forma prática e objetiva, e talvez naquilo que há de mais essencial: a saúde. Duas faces deste cuidado me marcaram muito. A primeira, lembro nitidamente, ainda muito criança, quando eu a visitava, de segurar qualquer tipo de espirro ou tosse na presença dela. Isto porque, ao menor sinal de gripe ou resfriado, restava proibido o refrigerante gelado; e lá ia eu ao fundo da garagem, no fim de tarde, poente, buscar o refrigerante levemente aquecido para comer com bolo.

A segunda, e mais marcante, é que, para meu espanto, minha avó Nadir foi a primeira pessoa (e uma das poucas, até hoje) que vi, a usar máscara normalmente dentro de casa ou na rua quando estava gripada ou resfriada. Era uma máscara de croché, feita talvez por ela mesma (era extremamente habilidosa com agulhas e linhas) e que, tal qual uma odalisca, protegia os seus filhos e netos queridos da eventual possibilidade de transmissão da doença.

O tempo passa, e hoje, conversando com meus irmãos, vejo como minha avó, no final da década 70 e começo da década de 80, era uma visionária, traduzindo, já naquela época, a um comportamento que hoje se pede como mandatório nestes terríveis tempos do coronavírus.

E o que mais me emociona ao escrever este texto, é perceber minha incompreensão em não entender a grandeza daquele ato. E, como sói acontecer em quando a gente é jovem ou criança, a injustiça em não entender o uso da máscara em sua pureza e significado; mas sim vendo como algo excêntrico e de algum modo hipocondríaco. Não entendia que este era um gesto de elevada empatia e carinho, de quem percebe que não se está sozinho no mundo e que um singelo artefato de pano, pode prevenir o sofrimento e até um risco à vida do seu próximo (e hoje em dia, em tempos de pandemia, sabemos que para ser próximo, não importa se se é muito próximo, como um filho, ou se é “apenas” o próximo, de quem você se aproximou, e tem importantíssimos deveres de cuidado também para com ele. Máscaras salvam vidas de todos os que estão próximos). 

A compreensão, costumo dizer, é fruto de um exercício de atenção, humildade e de empatia. Isto porque, de regra, até vivermos as dores da escassez, ou sermos brindados com o brilho do conhecimento, ou sentirmos as dores no pé calçando o sapato apertado do outro; não compreendemos efetivamente o mundo que nos cerca. Não compreendi minha avó no passado. Hoje a louvo e rendo minhas homenagens a ela nestes tempos de COVID-19.

Incompreensões como a minha acontecem todos os dias de nossas vidas. Ainda mais neste mundo líquido e apressado em que vivemos. Julgamentos irrefletidos e apressados geram aplausos e cancelamentos sumários. E na linha do longo prazo, entre fracassos e tropeços, vai se aprendendo, assimilando e evoluindo

E, neste ponto, entendo que estes tempos de quarentena podem ser uma imensa oportunidade de reflexão para cada um de nós, em termos de alteridade e de nosso dever para com o outro. Tudo porque, como tem sido dito nas entrevistas coletivas do Ministério da Saúde, este insidioso vírus da COVID-19 é um mal que ataca muito mais a sociedade do que o indivíduo. Ele ameaça muito mais em uma perspectiva macro do que micro. Ele é terrível porque tem potencial de infectar bilhões de pessoas, mesmo tendo consequências adversas sérias ao bem-estar físico de um percentual pequenos destes indivíduos. Ele colapsa os sistemas de saúde. Desmantela os sistemas funerários. Quebra e dificulta os fluxos de pessoas e econômico.

Sim, mas qual seria a oportunidade? Ora, a oportunidade está em que a resposta para todos estes males está sim na alteridade, no cuidado com o outro. Talvez como em nenhum outro momento ou ameaça em nossa história.

Comecemos pelo ficar em casa. Por que estamos em casa? Pelo risco individual? Também, por não sabermos como cada organismo vai reagir ao vírus. Mas principalmente estamos em casa para diminuir o ritmo da transmissão, de modo a garantir que todos os que precisem de atenção hospitalar, notadamente os mais vulneráveis, possam ser cuidados com os equipamentos disponíveis. Estamos em casa para que, mesmo assintomáticos, como a maioria das crianças, não espalhemos a ameaça por aí. Ou seja, estamos em caso pelo outro.

Por que usamos máscara? Para nos proteger? Também, mas principalmente para quando precisarmos sair para o mercado ou farmácia, nossas gotículas de saliva não corram o risco de infectar desavisadamente os trabalhadores que continuam laborando nas atividades essenciais para que um mínimo de normalidade se mantenha nestes dias tão difíceis. (E que estão trabalhando pelo outro – nós).

Aliás, quer mais maravilhoso exemplo de alteridade do que o exemplo daqueles que vão para a linha de frente de atenção à saúde, e mesmo correndo seríssimos riscos, mantêm-se atuando, curando pessoas e salvando vidas?

Mas a preocupação com o outro, graças ao bom Deus, transcendeu as fronteiras do combate à pandemia em si, e também adentrou na seara da economia. Tudo porque sabemos que, para salvar vidas com a quarentena, boa parte das atividades econômicas restou prejudicada fortemente. E neste contexto, mais ainda, microempresários e microempreendedores que não têm capital de giro e fôlego financeiro para sustentar paralisações em seu negócio por muito tempo.

E, para tanto, os cuidados com os afetados pela economia, começam a aparecer. Seja pela efetivação de medidas protetivas sociais: pagamento de seguros-desemprego; garantia de salários; disponibilização de crédito; suspensão de pagamentos, entre outros. Medidas de caráter geral, mas que não deixam de ser altruísticas no plano individual, porque os recursos públicos nada mais são do que a redistribuição de um bolo tributário que a sociedade confia ao Estado.

Como também, na crise, exsurgem cada vez mais atitudes de caráter individual, em as pessoas direcionando suas compras para os pequenos negócios; ajudando financeiramente instituições de amparo; ou simplesmente continuando a pagar mensalidades de profissionais autônomos, como diaristas, professores particulares, entre outros, que não estão prestando serviço, como medida de contenção da pandemia.

Neste ponto, vale salientar o falso dilema que existe entre proteção da saúde e proteção da economia. Este dilema não existe, até porque o que temos que proteger é o indivíduo. O eu, sem esquecer (e esta é a grande novidade) do outro. Sendo que, se garantirmos que ninguém fique para trás, seja em prevenção da COVID-19, seja em tratamento de doentes, seja em garantir a dignidade de cada ser humano neste período de quarentena, estaremos vencendo a guerra contra o terrível mal que nos aflige (e que também passará, como tudo passa).

Para finalizar, trago outra lembrança, uma pequena estória que também ouvi em minha infância, e que, de algum modo, relembrei quando escrevia este artigo. A estória segue assim: dizem que uma criança perguntou a um sábio como era o Inferno. Este disse que era um local com muita comida atrás de grades, porém com pessoas com mãos amarradas para trás. Elas conseguiam pegar o alimento com as mãos, mas não conseguiam levá-lo à boca (nem tampouco eram capazes de abocanhar o alimento diretamente com os lábios e dentes). Viviam todos tristes, desesperados e famintos. - E o céu? Perguntou a criança. O sábio respondeu com um sorriso enigmático: - É o mesmo lugar, com as mesmas condições, porém com as pessoas felizes e saciadas, espiritualmente livres, umas alimentando às outras.  (Este é o caminho para salvação nesta profunda crise, e ele começa exatamente na salvação do outro).

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