Artigo: O possível fracasso da racionalidade, respostas da neurociência e uma proposta de decisão em tempos de covid-19

04/05/2020 18:34

João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: O possível fracasso da racionalidade, respostas da neurociência e uma proposta de decisão em tempos de covid-19

 

“Se continuarmos indo para onde estamos nos levando, sem sombra de dúvida, chegaremos lá...”. “O problema das consequências é que elas vêm depois...”. O caro leitor deve estar sim se perguntando o que estas frases, de efeito, porém de conteúdo aparentemente óbvio (ou seja, em princípio, acacianas, lembrando o personagem de Eça de Queirós, que sob o manto de uma suposta erudição, dizia apenas sentenças sem conteúdo), estariam fazendo no início deste texto. Justifico explicando que, muitas vezes o óbvio, em termos de racionalidade, muitas vezes não é tão claro e evidente assim.

 

Digo isso porque, apesar de a questão do agir racional ser extremamente complexa, temos que mesmo na sua acepção mais simples, da racionalidade baseada em causas e consequências, esta pode gerar perplexidade nas decisões mais corriqueiras. Daí o uso de drogas, o consumo excessivo de carboidratos, o sedentarismo, o hábito de falar ou teclar no celular ou beber e dirigir, dentre outros, que todos sabem ser potencialmente perigosos no curto ou no longo prazo, e ainda assim, nós seres humanos racionais, podemos vir a praticá-los.

Ou seja, sabemos (ou deveríamos saber) que não é bom, e, em uma outra medida, praticamos. Mesmo cientes para onde estamos nos levando e as possíveis consequências que advirão em nosso desfavor. Motivo pelo qual talvez não sejam tão vazias as frases da introdução, podendo delas serem extraídas reflexões pertinentes ao momento atual de pandemia.

Tudo porque, lamentavelmente, o corpo social não está na mesma página no que pertine à prevenção, ao convívio, ao combate e à mitigação dos efeitos do coronavírus. Enquanto uns heroicamente lançam-se ao front de batalha tentando minimizar as dores da situação, outros ainda nem perceberam quão grave, preocupante e mortal esta crise pode ser (e tem sido ao redor do mundo).

 Este último caso pode ser constatado nas mais diversas condutas: como o dar de ombros à gravidade da situação (e sair à rua como se nada estivesse acontecendo); o ato de negar a necessidade de distanciamento social (e agir como se o mundo não houvesse mudado); o não envidar medidas concretas para evitar a disseminação do vírus (e não usar máscaras), ou a lamentável adoção de discursos totalmente desconectados da realidade do que ora se enfrenta, inclusive com apelo às famigeradas fake news. 

Mas, por que isto ocorre? Por que tal descompasso? Por que tantas pessoas em tantas páginas diferentes? Ora, existem diversos motivos, psicológicos, sociológicos, ou mesmo fisiológicos, que a neurociência cataloga e nos ajuda a entender porque há tantas pessoas alheias ao imenso risco que ora se apresenta à saúde de todos (e de cada um, inclusive dos alheios), e à própria sobrevivência de nosso corpo social. Vejamos.

 Primeiro, há que se ter em conta que a realidade, que se pensa objetiva, é apreendida subjetivamente por cada indivíduo. Ou seja, um mesmo fato vivenciado por duas pessoas distintas, mesmo que gêmeos idênticos, trará percepções, consequências, lições diferentes para cada um. Deste modo, por exemplo, alguém que sofreu com a Covid-19, por si, ou alguém próximo, certamente dará mais dimensão à pandemia, do que alguém que não teve contato com a doença. (E como estamos ainda em muitos lugares, no começo da curva epidêmica, não sentimos em escala maior, a força dos efeitos da doença).

Segundo, e que é decorrência do primeiro, temos que o nosso cérebro tem uma enorme capacidade de negar ameaças, especialmente quando estas se apresentam como ainda em potência, iminentes, e ainda não em realidade de fato prejudicando objetivamente nossa vida. É por este motivo que temos dificuldade em perceber os problemas relativos ao aquecimento global ou a poluição dos grandes centros. Ou seja, temos dificuldade em prevenir o novo inimigo que vem inexorável, porém em silêncio e devagar, mesmo havendo quem faça o devido alerta. 

No caso da Covid-19, Aracaju, por exemplo, e muitas cidades, ainda não têm casos massivos; e como a sociedade ainda não sentiu o problema na pele, não consegue transportar com facilidade a realidade de Manaus, Recife, Fortaleza, São Paulo, Itália, Espanha, Nova Iorque, lugares onde a epidemia está mais severa, para cá. O firewall da negação funciona, e segue-se com a vida normal, com aglomerações, falta de cuidado e sem uso de máscaras.

Terceiro, que decorre do segundo, preferimos, portanto, inimigos conhecidos do que desconhecidos. Neste ponto, podemos valorizar mais o medo de questões palpáveis e concretas, como a depressão econômica e o desemprego; do que questões ainda etéreas como os efeitos devastadores de uma pandemia. Ainda mais quando cada ser humano tem uma enorme aversão à perda, não só financeiras, mas também de modo de vida, de hábitos (ir ao shopping, cinemas, bares, praia, visitar amigos, futebol, etc). 

Assim, temos um inimigo supostamente potencial (pandemia) contra um inimigo real (perda de modo de vida), sendo que evolutivamente o ser humano naturalmente traz o instinto de dar mais ênfase ao imediato e concreto, do que ao mediato e abstrato. E para superar esta tendência, demanda-se informação e convencimento. E muitos, até pela própria dinâmica da vida, não tiveram condições de se convencerem ou oportunidade de serem convencidos do problema da pandemia. (Para os que estão em extrema vulnerabilidade social, por exemplo, a pandemia é apenas mais um dos imensos perigos que podem ameaçar o existir diário).

Quarto, que os cérebros procuram funcionar no automático. Para tanto, não buscam ordinariamente soluções baseadas em estudos complexos, ponderando fatos, probabilidades, análises de risco e dados científicos. Não. O mais comum é buscarmos soluções baseadas em paradigmas do passado. Porém, em que paradigma podemos nos basear se o que se apresenta é totalmente novo e insólito em relação a tudo o que esta geração viveu? 

Como tratar? O que fazer com o ano letivo? Com a economia? Poderemos nos abraçar novamente? A pandemia anulou os velhos paradigmas, mas enquanto não surgem novos parâmetros consolidados (e isto se chama crise), muitos dos antigos hábitos continuam a serem erroneamente usados. (Como por exemplo achar que o Covid-19 causa “apenas” uma gripe).

E, para finalizar, o quinto ponto (haveria outros, mas fiquemos por aqui), que é interligado com o quarto e com todos os outros: o problema da desinformação e das fake News. Ora, como já dissemos, o cérebro, para a tomada de decisões baseia-se em experiências passadas, sejam vividas ou apreendidas por meio de informações. Neste passo, no processo de assimilação ou de acomodação de dados novos, nosso cérebro vai comparando aquilo que se apresenta como novo, com tudo aquilo que foi registrado de outras fontes; dando o crédito (de verdadeiro ou falso) a partir de um sistema moral individualizado baseado nas próprias convicções e lembranças. Neste ponto, se esta convicção ou lembrança é equivocada, derivada, por exemplo, de uma fake news, eis que surge o problema.

Daí que os líderes, os ídolos, as informações que circulam, têm um papel essencial, pois se a ordem é ficar em casa, mas a pessoa que eu admiro como herói diz que não; então eu classifico a ordem como falsa (dou mais crédito ao meu líder). Se eu vejo uma notícia de que o vírus causa muitas mortes e outra de que é um resfriado sem consequências e com vários remédios, eu desconsidero a ameaça (prefere-se a notícia que reforça nossa convicção). 

Sendo certo que o ser humano leva muito em consideração uma ética de grupo, e de como ele é visto por este grupo. Nesta medida, se eu faço parte de um agrupamento que desconsidera a validade da quarentena, há uma tendência de eu acompanhar a posição do grupo neste ponto. (Ainda bem que o contrário também funciona: se eu vejo todos de máscara, e eu estou sem máscara, fico constrangido e corro para colocar uma).

E o que fazer, diante deste grave cenário? Proponho duas coisas, dentre tantas outras possíveis. Uma, o exercício da humildade: sabendo como nosso mecanismo de tomada de decisão é falho, devemos ponderar muito antes de efetivarmos nossos julgamentos morais acerca da postura a ser adotada nesta pandemia. Duas, que a resposta para o COVID-19 esteja focada na alteridade, empatia e altruísmo (inclusive compreendendo as múltiplas visões de mundo). Por isso, na dúvida do que fazer, que pensemos no outro:  na família, nos amigos, nos colegas, vizinhos, conterrâneos, nas pessoas que nem conhecemos. Se a decisão a ser adotada, servir de inspiração para que cuidemos delas, e que elas cuidem de nós, desconfio que tal postura tende ao caminho certo. (E se formos todos pelo caminho certo, juntos, chegaremos lá),

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