Artigo: o rei Nu, o príncipe, e o pequeno príncipe, e suas lições em tempos de covid-19

02/06/2020 17:51

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: o rei Nu, o príncipe, e o pequeno príncipe, e suas lições em tempos de covid-19

É notório o fascínio que as monarquias exercem sobre as pessoas. Não sei se advém dos contos de fadas, onde príncipes intrépidos lutam contra vilões terríveis, resgatam princesas virtuosas e, ao final, agraciam a todos com um lindo beijo de amor verdadeiro. Não sei se é a beleza da riqueza dos vestuários, das joias, das coroas, ou é o poder vitalício e hereditário; ou se é tudo isso, porque representaria um arquétipo de felicidade que está culturalmente inserido nas pessoas. (O fato é que valorizamos tanto estes símbolos, que o jogo de xadrez com reis e rainhas é sempre um clássico, os prédios oficiais são comumente chamados de palácios, e os casamentos e nascimentos de herdeiros de casas reais sempre têm enormes repercussões...)

Por isso, aproveitando esta aura de interesse, que me sirvo da simbologia sobre reis e príncipes, para estruturar alguns palpites éticos sobre a pandemia do Covid-19. E, como sempre faço, seguindo o caminho do título para não me perder, começo por discutir a fábula que deu origem à expressão “o Rei está nu”.

Ora, tal fábula é por demais conhecida, mas, para quem não conhece, ou para relembrar, conta-se que em um reino, onde o monarca era muito vaidoso, apareceu um estelionatário que prometeu ao Rei costurar a roupa mais exclusiva e maravilhosa que já se teve notícia. A roupa seria feita com um tecido tão rico e tão especial, que apenas as pessoas inteligentes e virtuosas a veriam. O engodo foi perfeito. O falsário mostrava o tecido invisível (que não existia) ao rei, e a todos os seus auxiliares; e todos, para não confessarem sua ignorância, diziam que era o tecido mais belo que existia.

A farsa continuou, e depois de algum tempo (e do régio pagamento), a não-roupa foi entregue (talvez o primeiro superfaturamento que se tem notícia) e o Rei, muito vaidoso, saiu à rua, completamente nu para saudar os súditos. O povo estranhou, mas sempre havia alguém para lembrar que somente as pessoas inteligentes e virtuosas enxergavam a roupa. Assim, ninguém assumia que não via a roupa imaginária, e o desfile vergonhoso continuava. 

Até que, finalmente, uma criança gritou: - o Rei está nu! Foi aí que todos caíram em si, e começaram a rir; e o Rei desnorteado e envergonhado, percebeu o vexame que havia se metido. (Daí a expressão que passou a denotar o exato momento em que se percebe todas as fraquezas e fragilidades de alguém ou de alguma instituição).

 Sim, mas e o Covid-19? Ora, este terrível vírus, infelizmente, veio desnudar os problemas estruturais seríssimos de nosso país, seja em termos de saúde, econômicos e educacionais. (Há outros, mas vamos nos focar nestes três).

Realmente, o novo coronavírus reescreveu em tintas mais fortes, a tragédia sanitária brasileira, em termos de um sistema de saúde subdimensionado e subfinanciado, com enormes assimetrias entre oportunidades de atendimento na rede privada e pública, e conhecidos gargalos de equipamentos, notadamente nos Municípios mais afastados. 

Sendo que, antes que venham os argumentos políticos e retóricos, friso que este não é um problema fruto do Governo “A” ou Governo “B”. Este é um problema estrutural e sistêmico que se demonstra desde a criação do SUS (Sistema Único de Saúde). Sistema que, apesar de maravilhoso em sua essência (e salvador mesmo com muitos defeitos), não raro demonstra, ao longo do tempo, colapsos setoriais em diversos segmentos, como no atendimento oncológico, de cirurgias de alta complexidade, de entrega de medicamentos, entre outros.

 Neste prisma, se o sistema já era pressionado, imagine como está agora com o surgimento de uma doença que, de repente, passa a demandar, de uma só vez, atenção de grandes quantidades de profissionais de saúde, de leitos de enfermaria e de UTI, de equipamentos de proteção, entre outros. (E passa a demandar escolhas de Sofia, todos os dias).

Em termos de Economia, a pandemia, se por um lado, passa a exigir enormes investimentos públicos, seja para a mitigação da doença em si, seja para amparar os afetados pela paralisação das atividades decorrentes do distanciamento social; por outro, aclara a falta de fôlego fiscal na União, nos Estados e nos Municípios para tal intento. O cobertor de proteção social fica curto e não atende a todos que dele precisam.

Quanto à Educação, o câncer da desigualdade social cobra o seu preço. Enquanto aqueles que têm acesso a aulas de forma remota continuam, mesmo com dificuldades, a luta pelo aprendizado; quem não tem ao seu dispor equipamentos eletrônicos, banda larga e profissionais aptos a desenhar a disseminação do conteúdo à distância, fica à margem do processo. Neste ponto, se já havia um abismo a separar as oportunidades dos alunos da rede pública e da rede privada. Este antigo abismo pode tornar-se um poço sem fundo. (E qual será o preço disto em nosso futuro?)

Ou seja, nossas mazelas peregrinas, na calamidade avultam e mostram suas feridas. Mas será que vamos continuar assim sempre? Em um ciclo de reprodução nefasto e vicioso? E o Príncipe? O que ele tem a ver com isso? 

Ora, não falo de um Príncipe real, mas sim de “o Príncipe” obra mundialmente conhecida de Nicolau Maquiavel. Obra, que, por um lado, é reconhecida pelo seu brilhantismo, de verdadeiro tratado sociológico e político de como funcionam os processos de tomada e manutenção do poder. Por outro, ela é vista como uma obra de caráter maléfico, e que faz surgir o adjetivo maquiavélico, designando aquele indivíduo sem escrúpulos, sem moral virtuosa, e que utiliza de todos os artifícios para conseguir os seus intentos. (Adianto que a obra não é do mal. Se ela é cruel, é porque os bastidores do poder são cruéis e Maquiavel, que apenas retratou a realidade, não pode ser punido por isto). 

Mas qual a relação desta polêmica obra com o direcionamento das condutas para o momento presente? 

O vínculo existe ao menos por dois motivos éticos relevantes. Primeiro, porque a pandemia não pode servir de pano de fundo para qualquer tipo de manipulação do sofrimento sanitário e econômico em prol de interesses políticos de plantão. O famoso adágio “os fins justificam os meios” não são abraçados pela Constituição brasileira e nem podem ser admitidos pelo grau de maturidade democrática que vivemos. 

Segundo porque, apesar das críticas ao autor pelo fato de a obra tratar apenas de técnicas para conquista e manutenção do poder, e não de como, por exemplo, beneficiar a população e o interesse coletivo; temos que o Maquiavel, há mais de 500 anos, teve insights extraordinários de psicologia e economia comportamental tão estudadas nos dias de hoje. 

Ele percebeu, por exemplo, como funcionam as mentes das pessoas quanto à questão da aversão à perda e de como funcionam os mecanismos da gratidão, dizendo que a maldade deve ser feita de uma vez só, e as bondades fracionadas ao longo do tempo. (Quantas vezes isto não é usado eleitoralmente, com as maldades de início de mandato e as pequenas benesses alocadas ao longo dos quatro anos, principalmente no ano final, que coincide com a eleição.)

Ou seja, mesmo sem uma moral virtuosa e altruísta, Maquiavel primava por um raciocínio estratégico vocacionado ao alcance de um resultado. Ele era racional. Ele pensava e observava condutas que conduziam ao fim desejado. Ele não acreditava no acaso, ele trabalhava com causa e efeito, eficiência e resultado. E este é exatamente o ponto que quero explorar, pois se queremos o bem, se queremos concretizar o projeto constitucional em termos de saúde, educação, fôlego fiscal, temos que agir de modo tendente a que estes resultados aconteçam.

Deste modo, sem colocar o Sistema Único de Saúde como real prioridade; sem uma busca obsessiva pela eficiência nos gastos públicos; sem pensar e efetivamente laborar a Educação como algo estratégico para o futuro; não conseguiremos, por mero acaso alcançar tais objetivos. (E aí não basta falar e sentir, temos que fazer).

E, para tanto, precisaremos de vontade política, de sentimento, de propósito, de virtude. Por isso, se vimos o diagnóstico com o Rei Nu, se visitamos o olhar estratégico do Príncipe (porém sem nunca olvidar ou passar ao largo da Constituição!); trago o Pequeno Príncipe para trazer os elementos que talvez estejam faltando para este olhar ético dar certo. Mas como seria isso?

Ora, Saint Exupery, nos diálogos do seu alter ego aviador com aquele menino príncipe, nos faz viajar pelo que é de mais belo nos sentimentos humanos. Amor, gratidão, saudade, imaginação, a busca pelo outro, permeiam cada página das alegorias contadas no Pequeno Príncipe; nos inspirando e estimulando a buscarmos dentro de nós a essência que é invisível aos olhos tão retratada naquele livro.

Mas, o que mais impressiona na estória, e o que mais é relevante para uma ética para o Brasil e para o futuro nestes tempos de pandemia, é a exortação que Exupery faz da busca pelo outro. Frases singelas como: “Você é responsável por aqueles que cativa”; Se você vem às quatro, desde as três horas estou feliz”. Mostram que a felicidade e o sentido da vida não estão ao fim de uma corrida individual ininterrupta e sem começo nem fim (vide o trabalho sisífico do acendedor de lampião, ou o homem de negócios solitário que vivia a contar as estrelas para sua fortuna). A felicidade sim, é construída a partir de uma visão coletiva de alteridade e altruísmo, onde o bem-estar geral edifica e qualifica o bem-estar individual e não o contrário.

Assim, a ética de que falo e busco passa pela percepção de que os problemas de saúde, de educação e de desigualdade brasileiros são de responsabilidade de todos. E de que a solução tem que advir da união racional destes mesmos todos, a partir do diagnóstico das falhas, do que deve ser feito, e de uma implementação coesa e resiliente da construção do novo futuro. Aliás, por falarmos em reis, algum dia escrevo por aqui a estória de Edutriv, o primeiro rei de Utopia que conseguiu se libertar da visão maquiavélica de governar exclusivamente para si e os seus. Ele dizia: “quando o governante (e isto vale também para os cidadãos) consegue superar a barreira do eu, e consegue se concretizar como instrumento de construção do desígnio divino em prol do coletivo; ele pode dizer que alcançou o sucesso”. O que significa dizer, em outras palavras, que alcançou a própria felicidade. (Apenas isto, xeque-mate). 

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