Artigo: “LONTRA”

06/08/2020 20:44

Por Luiz Eduardo Oliva | Advogado, poeta, e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas


Artigo: “LONTRA”

Cão velho, nos meus sonhos ele era só alegria. Na minha visão onírica, Lontra aparece morando com minha irmã Maria Pequena. Quando vou visitá-la, as visitas são preenchidas com a alegria dele, sempre eufórico e cativante. Velho cão, velhas lembranças, de um distante tempo da minha adolescência. Ilógico, como ilógicos são os sonhos eu lamentava a velhice dele e discutia com Maria Pequena a proximidade da sua morte. Certamente iríamos sentir muito. Maria Pequena nem queria considerar a hipótese. No sonho, Lontra era eterno.

Pêlo negro e luzidio, o cão era uma mistura de pastor alemão e vira-lata. Uma ninhada de Nancy, uma cadela pastora-alemã, de uma amiga da minha irmã mais nova, Mércia, um cãozinho seria nosso. “Não é puro” dizia a amiga: “Nancy fugiu e quando chegou em casa logo depois estava prenha, mas não sabemos quem é o pai, talvez um vira-latas desses da redondeza”. Quando o cãozinho chegou em nossa casa foi uma festa. Redondo, preto, uma bolinha. Minha mãe lembrou logo do cão de meus avós, no Riachão, com aquela mesma pelugem. Logo batizou de “Lontra” com um duplo sentido: homenagear o velho cão de meus avós e também seguir a tradição de proteger contra a raiva canina. Dizia a tradição, quando as campanhas para prevenir zoonoses não existiam, que colocar nome de animais marinhos era batata, não pegaria a raiva! “Baleia” imortalizou-se em “Vidas Secas” com toda a engenhosidade do alagoano Graciliano. Mas ela mesma a cadelinha do romance, recebeu o tiro da espingarda cruel de Fabiano porque desconfiou o danado que a bichinha estava com princípio de hidrofobia. Mas lá em casa valeu o nome. Era Lontra e pronto. Tava batizado.

Nunca aprendemos direito como cuidar de um cão. No início todos lhe davam carinho. Lontra cresceu, tomou o formato de um cão diferente, nem pastor alemão nem vira-lata, mas tinha um porte diferente, poderia assim dizer, elegante, olhos vivos, grande, parecia uma pantera negra. No começo era festa, 11 irmãos afinal, mas aos poucos foi sendo desprezado. A cada um de nós quando voltando da rua, chegávamos em casa, ele corria acolhedor, balançando o rabo festivamente, mas nós ou tínhamos aquele passar com a mão à sua cabeça, ou o repelíamos com um "chega-prá-lá, não incomoda”. Lontra não compreendia e insistia na sua cordial recepção, às vezes impertinente, mas só demonstrando carinho.

Um dia, ele comia o seu osso no corredor do fundo da casa, uma passagem estreita que ia dar no quarto dos meninos, contíguo ao quintal. Não sei por que, Lontra sentiu-se ameaçado. Insisti na minha passagem. Mostrou-me os dentes, rosnando. Ante a sua ameaça, decidi enfrentá-lo: minha condição de dono não poderia sucumbir à sua ameaça. Em vão. Lontra encurralou-me rosnando feroz. Armei-me com um cabo de vassoura, mas não adiantou. Por instantes tomou-me um pavor só comparável ao dos condenados no 3° círculo do inferno de Dante que teriam que enfrentar Cérbero, o terrível cão de três cabeças que só se acalmava quando lhe saciavam a fome. Mas foi um providencial balde d"água que avistei num canto perto da lavanderia que acalmou a sua fúria. Não sei por que, funcionou e Lontra recuou, rabo entre as pernas e eu passei. Daquele dia em diante, passou a olhar-me com desconfiança. Balançava o rabo, cumpria o seu ritual e logo se acomodava. Havia um respeito recíproco entre nós.

O tempo passou e logo Lontra foi envelhecendo. Cães envelhecem rápido. Um dia, notamos que o seu pelo estava caindo. Havia feridas, e suas patas que deixavam o chão marcado por uma incômoda gosma. Tinha nele uma sombra de sofrimento acentuado pela solidão em que ele vivia numa casa com 13 pessoas que o evitavam: o incômodo do mau cheiro que a sua doença provocava e mesmo o aspecto da própria doença, embora também enchia-nos de compaixão.
Já tendo gasto muito com remédios e ante o diagnóstico do veterinário que não via cura (Lontra já estava na idade limite, para um cão) meu pai decidiu mandar sacrificá-lo. Injeção letal. Deram-lhe duas opções de preço, pelo sacrifício: com enterro, ou jogado no lixeiro, aos urubus. Meu pai optou pelo enterro e comunicou a todos da casa. À saída, o velho cão entrou no carro com a mesma alegria com que costumava ter quando saia para passear. Alegria de doente, mas era alegria. Todos foram à porta, contristados; aquele momento era o do último adeus. Claro que o velho Lontra não compreendeu aquela derradeira manifestação de apreço. Minha mãe ainda derramou lágrimas. Ficamos em silêncio, e ali compreendemos o quanto amávamos aquele cão. Não demorou e meu pai retomou silencioso e cabisbaixo, conformado e com a convicção de que o veterinário cumpriria o pactuado.

A sala de jantar de onde ele tinha sido levado ficava em frente ao quintal. Não raras vezes, Lontra se fazia presente ao almoço, deitado, ao lado da mesa. Na doença, ficava amarrado à coleira, no quintal, mas à vista de todos, se bem que ninguém se dava conta de sua presença Mas naquele dia foi um almoço diferente, 13 pessoas, um naco de comida, um olhar um ao outro e a princípio ninguém dizia nada. A falta de Lontra transformou sua ausência na mais verdadeira das presenças. Algumas indagações de Mércia ou Chico — nem me recordo qual dos irmãos — perguntando se ele já teria sido sacrificado. Meu pai monossilábico, apenas dizia que o veterinário logo cumpriria sua promessa. Nunca tivemos certeza deveras, se Lontra fora mesmo enterrado ou jogado aos urubus.
Não tardou que todos nós retomássemos à rotina da casa, e logo a vida seguia normal, sem a sua presença que nem era incômoda nem era alegre. O tempo logo curou a saudade. Animais domésticos só dão conforto ou incômodo à vida dos humanos. Nós os relegamos ao distanciamento dos da sua espécie, obrigando-os a viverem conosco, permitindo raros momentos de encontro com outros animais, em passeios matinais ou no ciclo do cio, para o acasalamento. Lontra nunca acasalou, morreu "donzelo” como se dizia na época. Meu pai nunca mais quis criar outro cão.

Não raro, Lontra visita-me em sonhos como nesse em que, nem sei porque, ele continuava vivo e velho morando com Maria Pequena. O sentimento é sempre de ressentimento, alegria, desprezo ou respeito entre nós dois. Nunca mais esqueci, de quando me mostrou os dentes e me acuou e eu o fiz recuar pelo providencial balde d’água. Daquele dia para cá, nunca mais fomos os mesmos, um para com o outro. Mas um sentimento de respeito mútuo marcou as nossas vidas. Os velhos cães morrem rápido, às vezes sacrificados e ficam esquecidos. Mas Lontra para mim se faz eterno, nas noites em que, em sonho, me visita.

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