Artigo: Felicidade é uma cidade pequenina

02/09/2020 15:09

João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: Felicidade é uma cidade pequenina

Dizem que, em uma noite sem lua, já muito tarde, estava um filósofo caminhando sozinho à beira de uma ponte, quando um policial, ou suspeitando de algo, ou mesmo preocupado com o que poderia advir com aquela criatura solitária em meio à imensidão, perguntou: 

- Está precisando de algo? 

O filósofo ficou meio surpreso e não deu resposta, tanto que o policial replicou, já impaciente:  

- Não tenho tempo, diga logo, quem é o senhor?  Está indo para onde? O que está fazendo aqui?

Eis que o filósofo responde:

- Excelentes perguntas. Estava exatamente a pensar nesta noite acolhedora: quem somos? Para onde vamos? O que estamos fazendo aqui?

Diz-se que a filosofia é a arte de se espantar e de se questionar sobre o que causa espanto e inquietação; de indagar sobre a dinâmica do mundo; ou, como diria Raul Seixas, saber sobre o início, o fim e o meio de nossa existência.

E a poesia pode ser vista de modo semelhante, também como um espanto, um espanto sobre um momento, que fica imortalizado no olhar do poeta, que revela a beleza, o significado, e a unicidade daquele instante.

Sim, muito bonito, mas o que tudo isto tem a ver com o nosso tema de hoje? Tudo, porque os tempos disruptivos que vivemos, as quarentenas, o novo, as súbitas paradas para reflexão as quais não estamos acostumados, são altamente propícias à prática da filosofia e da poesia, ainda que não percebamos que a filosofia e poesia tem nos visitado e nos invadido (carinhosamente ou não) nestes dias difíceis.

E onde a felicidade se enquadra nesta moldura? Ora, parar é um ato de subversão. E a parada trazida em maior ou menor medida a todos nós, em função da pandemia do Covid-19, e que se fez acompanhada de sua dose de medo, ansiedade, tristeza, e também resiliência, perseverança, esperança; acaba por gerar um movimento interior de questionamento de hábitos, de projetos, de rotinas, que não necessariamente espelhavam desejos verdadeiros e resultados que nos fizessem felizes. Neste prisma, as perguntas: somos felizes? Ou o que fazer para sermos felizes? Certamente se alojaram e encontraram um cantinho vip nos pensamentos de cada um.

Mas, o que é a felicidade? Onde ela está? Como atingi-la? (Eita que está até parecendo aquele programa jornalístico...) Evidentemente, não tenho a pretensão, com estas perfunctórias linhas, de trazer alguma certeza sobre o assunto. Mas se tiver um crédito do leitor atento, prometo de agora por diante, trazer alguns pitacos acerca da tão desejada felicidade, com base em lições da filosofia, da poesia e da neurociência.

Precisamos inicialmente de uma definição, e, para tanto, busco na música Pão e Poesia, de Fausto Lino e imortalizada na voz de Simone, o fio condutor de minhas considerações sobre a felicidade. Diz o poeta: “Felicidade é uma cidade pequenina/
é uma casinha é uma colina/ qualquer lugar que se ilumina/ quando a gente quer amar.” E com singeleza, beleza e magnífica sabedoria estas quatro estrofes resumem a ideia de felicidade que quero transmitir.

Comecemos pela primeira estrofe, por que a felicidade é uma cidade pequenina? Poderia ser pelo aconchego das pequenas cidades, onde todos se conhecem e tudo é mais simples e acessível (muito da felicidade está na simplicidade); poderia ser pela tranquilidade e pela paz (paz é requisito para felicidade); poderia ser pelo apelo ao interior, longe dos grandes centros (e, na metáfora, a felicidade está no nosso interior e não fora de nós).

Mas acho que o poeta quis mirar no fato de que a felicidade não mora na exuberância, na euforia extrema, no êxtase retumbante, como o que sentimos quando realizamos um projeto ou um sonho, ou quando celebramos uma grande conquista. Para mim, isto é alegria; e picos de alegria não são comuns e corriqueiros, são até bastante raros. (Alegria vai e vem, falaremos disto mais adiante).

O sentimento de felicidade é algo menos efêmero e mais contínuo, e tem relação maior com o eu da narrativa do que com o eu da experiência. (Em neurociência, linhas gerais, chama-se eu da experiência as nossas impressões que sentimos no momento, e eu da narrativa, a história que contamos sobre aquela experiência, e nem sempre os dois coincidem completamente. Aliás, é muito comum haver diferenças entre os dois).

Neste ponto, a felicidade menos está nos pulos de alegria quando da aprovação do vestibular, e muito mais no sorriso de satisfação, na hora de dormir, por ter feito um bom trabalho de estudos ao longo da vida escolar; menos, para o alpinista, no alto do pico do Everest, e muito mais no retorno à rotina, com a lembrança de todos os obstáculos que foram superados; não se sustentará  no brinde da noite de ano-novo, mas sim, quando todos foram embora, no sentimento de certeza de que deu tudo certo, e que se está preparado para o começo de um novo ciclo. Tudo porque a felicidade se concretiza e sustenta na história que cada um percebe de sua vida, e quanto mais esta história for positiva e alvissareira, mais a pessoa será feliz.

 E a felicidade é uma casinha, é uma colina? Sim. Entendo a casinha como o sentimento de pertencimento, pois dificilmente se é feliz sem pertencer a algum grupo, sem se conectar com outros, com os quais você se importa e eles se importam com você. Normalmente é a família, mas pode ser seu grupo de amigos, seus companheiros de lutas, e seus irmãos de jornada. É o local de acolhimento, a rede de segurança, o porto seguro nas dificuldades, e o porto de partida para outros voos. 

Daí a colina, pois a vida é ir e vir. Vamos à colina e voltamos à casinha. Altos e baixos. Euforia e aflição e a vida desenvolvendo seu ciclo. Não haveria vitória, se não houvesse derrotas. E não haveria alegria, se não houvesse tristeza. E, nas idas e vindas, de êxtases a eventuais fundos de poço, é que surgem as histórias de vida que contamos a nós mesmos e que percebemos desta caminhada. E a felicidade estará na média disto tudo, revelando-se na realização interior de que foi difícil, nem tudo é um mar de rosas, mas que valeu, valeu muito a pena ter vivido. (Felicidade, portanto, é saber ir e voltar e se alegrar com a oportunidade de viajar).

E qualquer lugar que se ilumina? Para mim isto tem a ver com felicidade, pois remete a sentido, e o que nos dá sentido na vida, nem sempre é algo óbvio, imediato. É muitas vezes uma coisa que passamos a vida toda buscando com intensidade, e não encontramos facilmente. Busca, muitas vezes decepção, perseverança, luta. Mas quando o sentido é realizado, percebido, introjetado ele faz iluminar nosso caminho, nossa existência, nosso sorriso - felicidade. (E nosso sorriso de felicidade será tão maior, quanto mais este sentido for sentido).

É um sentimento de ajuste (e não de conformação), de percepção de que estamos pondo em prática todas nossas condições de possibilidade. De orientação em prol da plenitude, de que o que fazemos e sentimos é válido, sustentável e universal. De que temos uma missão e que ela vale a pena ser vivida. (E que será vivida intensamente).

E é através do sentido que o pertencimento se expande e passa a nos acompanhar em todos os locais e situações. Pertencimento e plenitude tornam-se uma coisa única e que ilumina cada pequeno gesto ou situação, pois sabemos que tendentes a algo maior e pleno. E isto nos faz encaixar com o universo. E nos faz felizes.

E, para finalizar, a felicidade surge, quando a gente quer amar! Por que isso? Por diversos motivos. Primeiro, pela noção de querer, pois felicidade é ato de vontade; ninguém será feliz se não quiser, pois entre as escolhas permanentes da vida, sempre haverá momentos de copos pela metade, onde optaremos em achá-los meio cheios ou meio vazios (E para reclamar, qualquer desculpa basta). Segundo, pelo amor. 

Pelo amor ao universo. Quer demonstração mais espontânea de felicidade do que uma criança correndo sem limites em um parque? Daquele que vê o mar pela primeira vez? Ou de quem simplesmente vê e percebe o entardecer cotidiano, que em sua mesmice arrebatadora, traz sempre um sentimento diferente de conforto e propósito? 

E pelo amor pelo outro que, quanto mais incondicional, mais felicidade trará. Sempre que vejo uma pessoa que vive sorrindo, exalando paz e tranquilidade, (ou seja, felicidade) vejo sempre uma pessoa que sente júbilo com a alegria dos seus amigos, com a harmonia de sua família, com o bem do próximo. Ou seja, é uma pessoa que ama. 

Ademais, sempre que uma pessoa rica, muito rica, globalmente rica, não tem mais o que conquistar ou querer, e percebe o quão inútil é buscar o dinheiro pelo dinheiro; o seu último refúgio de projetos e conquistas é sempre uma obra filantrópica de bem-estar coletivo. Tudo, porque a concretização do bem do próximo é talvez aquilo que mais traga paz, pertencimento, sentido e retroalimente o desejo de continuar fazendo tudo isto, sempre, neste tortuoso ciclo chamado vida. 

Para finalizar, porque faz parte do contexto, trago trecho inicial da música cantada por Clarice Falcão, e que recentemente ilustrou uma campanha publicitária de um supermercado. Diz a música: O que faz você feliz?/ Você feliz, o que que faz? /Você faz o que te faz feliz? /O que faz você feliz você que faz. É isso. Seja na paz do sorriso, no aconchego do pertencimento, nas marés altas e baixas da alegria, no sentido que revigora e inspira, e no amor que nos faz humanos e nos sustenta; precisamos querer, construir e reconhecer a nossa tão sonhada felicidade. Ela é uma cidade pequenina, cheia de paz, repleta de oportunidades e franqueada a todos nós.

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