Artigo: Paulo Barreto e o livro de Lena - Por Marcos Melo

06/08/2022 22:51


Artigo: Paulo Barreto e o livro de Lena - Por Marcos Melo
Estudante em Maceió, fui gozar as férias de junho em casa. Nesse mês, de 1962, estava sendo encenada no Cineteatro Propriá o monólogo “O Homem Que Perdeu a Fé”, de autoria do dramaturgo Paulo Barreto (1911-1990).
 
A peça estava fazendo enorme sucesso. Lembro-me que quando fui vê-la, a ampla sala do Cine Propriá estava lotada. Tal êxito se devia a três fatores básicos: primeiro, porque o ator – Élinton Cunha –, Etinho na intimidade, era gente da terra, partícipe do recém-formado Grupo de Teatro Amador de Propriá – GTAP, sob a direção do mestre Manoel Ferreira Rocha. Todos queríamos ver a atuação de Etinho que, frise-se, se saiu muito bem.
 
Segundo porque, àquela época, o teatro amador, ou melhor, o teatro brasileiro, estava de vento em popa, no auge, por assim dizer, no Brasil e em Sergipe. Isto devido a existência de grandes companhias profissionais, como o TBC, que tinham em seus quadros atores e atrizes talentosos a exemplo de Procópio Ferreira, Sérgio Cardoso, Paulo Autran, Rodolfo Mayer, Cacilda Becker, Cleyde Yáconis, Maria Della Costa, Tônia Carrero, Ruth de Souza, Bibi Ferreira, Fernanda Montenegro e por aí vai. 
 
No que se refere ao teatro amador, basta lembrar o “Teatro do Estudante”, movimento criado pelo embaixador Paschoal Carlos Magno, que percorreu o país numa verdadeira maratona de divulgação das artes cênicas e que promoveu a descoberta de novos talentos. Houve, se não me falha a memória, um importante seminário sobre teatro, na histórica Penedo, realizado no portentoso Cine São Francisco inaugurado em 1960.
 
Em Sergipe, à época, importantes iniciativas amadorísticas foram realizadas, no âmbito estudantil, pelos professores Caetano Quaranta e João Costa. Caetano, estudante de medicina e que foi meu professor de Química Geral, no Ateneu, dirigiu algumas peças, com destaque para “Zefa Entre os Homens”, que tinha Valfredo Neri, meu colega de turma, num importante papel. Essa peça também foi encenada no Cine Propriá, com êxito. Da mesma forma que a premiada “Recital Sem Opus”, do dramaturgo João Costa, encenada pelos estudantes Luiz Antônio Barreto, Chico Varella, João Gama, o ator Orlando Vieira e os professores Antônio Joaquim e João Costa. Essa peça foi muito aplaudida em João Pessoa e no Rio de Janeiro.
 
E, em terceiro, porque “O Homem Que Perdeu a Fé” é um texto maduro, pungente, que reflete a condição humana em suas dúvidas existenciais. Tem um quê shakespeariano na medida em que avulta a hesitação do personagem diante dos mistérios vida e da morte. É uma obra inserida nos cânones filosóficos do existencialismo, vigente nos anos 1940/1950, quando foi concebida. Ela atesta que Paulo Barreto tinha uma acurada leitura das angústias que povoavam corações e mentes de sua geração e que, intelectualmente, é a geração de Camus, Malraux e Sartre a santíssima trindade que decodificou tais padecimentos d’alma no pós-guerra.
 
Portanto, “O Homem Que Perdeu a Fé” é uma obra seminal da dramaturgia sergipana e brasileira e, sem dúvida, Paulo Barreto pontifica na linha de frente dos autores que modernizaram o teatro brasileiro a exemplo de Ziembinski, Pongetti e Nelson Rodrigues. Seus textos teatrais, como bem ressalta seu filho Cleandro Barreto, na contracapa do recém lançado livro “Histórias de Meu Pai & Estórias por Meu Pai...” organizado por Lena Barreto, sua irmã, foram representados por atores do porte de Procópio Ferreira, Ítalo Cúrcio, Barreto Júnior, Rodolfo Mayer e Milton Carneiro.
 
Mas, Paulo Barreto, como muito bem ressalta o precioso livro de Lena, era um homem de inquebrantável fé cristã, de enorme compaixão pelos desvalidos da sorte, um escritor sensível à problemática social. Era, também, um bem-humorado cronista do cotidiano. Os textos selecionados por Lena Barreto, são biscoito fino de uma prosa elegante. Paulo, foi ainda, um poeta inspirado. O belíssimo “Mesa Vazia” diz muito da passagem do tempo no âmbito familiar, das idiossincrasias, do crescimento e das escolhas dos filhos, de suas partidas. Fez-me lembrar de “As Pombas”, belo soneto do parnasiano e diplomata Raymundo Correia. Como bem ressalta sua filha Cleia Tereza Barreto de Araújo: “Sensível como todos os poetas, apaixonado pela família e amigos, extremamente humano Paulo Barreto deixou um legado de honradez, dignidade, inteligência, simplicidade e humor nos seus trabalhos cômicos, trágicos, verdadeiros, sonhadores, sempre uma reflexão permanente sobre a condição humana.”
 
Por fim, não se pode falar em Paulo Barreto, ou melhor, na família Barreto, sem que se mencione o Cine Teatro Rio Branco, histórica sala de projeção e representação localizada no epicentro da Rua João Pessoa. O cinema Rio Branco, como era chamado, fundado por Juca Barreto, irmão de Paulo, foi palco de grandes eventos cinematográficos, teatrais e políticos. Sim, políticos, porque era em suas dependências que os partidos realizavam suas convenções. Local de Inesquecíveis produções cinematográficas, como os filmes dos surrealistas Buñuel e Fellini, que em sua tela foram exibidos; e palco de grandes representações teatrais de companhias em passagem por Aracaju.
 
Lembro que, em uma de suas paredes, estavam afixadas placas de mármore ressaltando as presenças de renomados artistas em seu palco, a exemplo do icônico tenor lírico Tito Schipa, num ano da década de 1920.
Certamente, muito do aprendizado de Paulo Barreto, nas artes cênicas, se deveu às fitas que viu na tela do Cinema Rio Branco e dos espetáculos teatrais que foram encenados em seu palco.
  
O Livro de Lena Barreto – Histórias de Meu Pai & Estórias por Meu Pai – traça um perfil magistral do intelectual Paulo Barreto. É, também, uma comovente homenagem a Josefa Batista Barreto, Dona Joselita, esposa amantíssima de Paulo Barreto e mãe adorada pelos nove filhos, em face da recente passagem de seu centenário. Vale a pena conferir.
 
Marcos Melo é professor emérito da UFS e membro da ASL
 
 
 
  

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