Artigo: A semeadura é livre, mas em vez de vento, podemos escolher semear tâmaras

11/01/2021 18:09

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: A semeadura é livre, mas em vez de vento, podemos escolher semear tâmaras

Eu me lembro de já ter visto o Sol nascer,

E de quão maravilhado fiquei quando

Luz e fogo, em harmonia, dançavam,

Desenhando um novo dia.

(...)

Eu me lembro de viradas de ano festivas,

Em que os sonhos não eram simplesmente etílicos,

Os beijos não eram instantâneos,

E não se filmavam fogos de artifício...

(o espetáculo do céu era gravado no delinear de um sorriso, no caminho de uma lágrima, ou em um abraço de carinho...)

(...)

Eu me lembro de um primeiro de janeiro de esperança,

E ainda trago a lembrança daquele primeiro dia

Amigo, Altivo, Coletivo;

Um dia de fortes braços e abraços

Em que corações em sintonia,

Podiam construir uma estrada, uma época, uma vida: (H) UMA (U) NIDADE...

 

Este é um trecho de uma mensagem de ano-novo que postei, há alguns anos (2014), em meu perfil no Facebook, e que retornou agora, no final de 2020, como uma lembrança a ser compartilhada. Foi bom rever a mensagem, recriar na memória o porquê das palavras e dos sentimentos nela embutidos. 

 Lembro nitidamente de querer expressar o quanto me incomodava a festa da narrativa, a festa da publicação em detrimento do festejar o momento. Que as pessoas em vez de se confraternizarem, trocavam o foco no abraço pelo foco na foto. Filmar em vez de ver, acontecimento em vez de vida, retrato no lugar de sentimento. (O que acaba por ser um paradoxo, pois registramos para lembrar-nos, mas aquele filme, que quase nunca mais será visto, uma vez que não foi intensamente vivido, tende plenamente a ser esquecido). 

Também me recordo que me chateava também os relacionamentos líquidos, (aqueles que não passam, e nem querem passar, da página dois), as fugas do momento, o estar no vazio, a falta de conexão entre as pessoas e a fragilidade dos laços afetivos. Isto sem falar nas famílias partidas por divisões políticas, as brigas ideológicas por qualquer motivo. E se a festa é da confraternização universal, como festejar uma união momentânea, sem nada de especial?

(O registro no celular, sem o respectivo registro no coração, faz perder o momento, faz perder a conexão; guarda-se apenas um instante vazio, em um canto escuro de uma prateleira sem memória.)

E a pegunta óbvia era: - este era meu sentimento para 2021? Não era. Entendi que havia algo diferente; a mensagem atual não era sobre superficialidade e liquidez. Pelo menos não totalmente. Daí que não recompartilhei a mensagem, e esperei que o tempo, sempre senhor da razão, me ajudasse, ao menos retrospectivamente, a entender qual era o meu sentimento para a virada 2020/2021.

E agora, passados dez dias do Réveillon, posso dizer que agora entendi meus sentimentos para a transição de ciclos. E sim, leitor amigo, ela tem a ver com semeaduras, com tâmaras e principalmente com escolhas. Expliquemos, pois fará sentido.

Realmente, 2020 nos levou como um turbilhão. Como se dizia na minha infância foi um “sarrabulho” (eu entendo sarrabulho, e este é o sentido do texto, como o fato de ser pego por uma onda no mar, e ser jogado, sem controle até a praia – depois descobri que poderia significar também um sinônimo de sarapatel) que nos tirou prumo e chão. Fomos emocionalmente jogados de um lado a outro, onde medos, angústias e aflições se sucediam sucessivamente. E tínhamos que ser fortes, tínhamos que viver e tínhamos que manter a serenidade.

E evidentemente que este turbilhão da pandemia deixou marcas. Marcas de saudade, em relação aos queridos que partiram; marcas de dor, pelo sofrimento trazido pela doença; marcas de medo, pelas incertezas, sejam sanitárias, sejam econômicas, sejam emocionais; marcas do novo normal, onde abraços, beijos e simples apertos de mão passaram a ser inadequados, e celebrações como as de viradas de ano que estávamos acostumados, tornaram-se impensáveis. 

Por isso, talvez, no primeiro momento, entendi a mensagem inapropriada. Não tínhamos (ou tínhamos em muito menor proporção) fogos de artifício para filmar; as festas diminuíram em número e tamanho (apesar da absoluta insensibilidade de algumas extensas aglomerações extremamente perigosas). A distância ou ausência era um tempero para o perdão e a união. Mudou o cenário, houve evidentes mudanças nos sentimentos. 

Mas será que foi uma mudança explosiva, disruptiva? Será que mudamos completamente do longínquo 2014 (data da mensagem) para 2021? Ou, mais proximamente, de antes da pandemia para o momento atual? Acabou que não, pois mudança nunca é algo que muda completamente.

Sim, a dor nos fez valorizar pessoas e relacionamentos. Porém, a fome do encontro (aquela ânsia de querer encontrar as pessoas e não poder), que foi uma tônica de 2020, não fez apagar a festa da (falsa) narrativa. Ainda houve muita gente que escolheu com quem e onde passar a virada de ano, com base no critério do cenário e de que como ficaria o layout da futura postagem. Pessoas que desenharam com antecedência o de onde, como, com quem e com que sorriso tirariam as fotos, e os exatos momentos em que as publicariam nas redes sociais para conseguirem mais curtidas... 

Querido leitor e leitora, sei que corro o severo risco de ser chamado de chato, antigo e ultrapassado; mas logo explico que não sou contra postagens. Não sou contra que você queira compartilhar um momento de alegria verdadeira com seus parentes, seus amigos e sua comunidade. (Aliás, que magnífico trabalho as redes sociais podem fazer aproximando pessoas e difundindo conhecimentos.)

O que me entristece é o fake. O momento que não existiu. O sorriso que termina na foto. Ou a foto que paralisa a briga, por um breve instante, até que a discórdia perdure pela noite inteira. O que me decepciona é o viver a vida do outro, quando pessoas ao verem as redes sociais de famosos e celebridades, imaginam que aqueles sorrisos espelham vidas ideais, de alegria exclusiva, de momentos rigorosamente felizes, onde tudo é perfeito, sem nenhuma humana exceção. (Quando se sabe que todos, absolutamente todos os seres humanos têm tristezas, dores e decepções, que antecedem ou sucedem momentos alegres, de júbilo, e reconhecimento e assim por diante).

Como também, minha segunda aspiração, o imaginado (e desejado) ano-novo de união, de busca de uma unidade que formasse uma verdadeira Humanidade, também ainda não se concretizou. Apesar dos sorrisos, das congratulações, de abraços reais e virtuais, as pessoas continuam divididas, e escutando mais os seus líderes, do que umas às outras em busca de consenso. Preferem a cisão, o partido, o cordão, mesmo que isto leve às posições mais absurdas, como, por exemplo, a negativa da ciência, a ruptura com a família ou, em casos extremos, a ameaça à democracia.

Sendo certo, (e isto é o que mais me espanta), que no frigir dos ovos, nesta dissensão política, não se tem posições dissonantes significativas quanto a temas abrangentes como a necessidade da probidade administrativa, da redução da desigualdade, da melhoria dos serviços públicos, do respeito à constituição, de garantia de liberdade, etc, etc, etc. Discute-se em função do líder ou do partido de preferência. Todos dizem querer a mesma coisa e não se unem para conseguir o objetivo comum. Realmente não faz muito sentido...

Deste modo, a fragilidade dos relacionamentos humanos (seja pela busca do efêmero, ou pela valorização das discórdias) ainda esteve presente no réveillon 2021. O vírus da fluidez nos laços de humanidade ainda persiste e ecoa sua capacidade. E o que mais permaneceu na virada de 2021, neste ano de tanta perplexidade?

Apesar de tudo, outra coisa que também não mudou, foram as leis de causalidade. Causa e efeito, desde que o mundo é mundo, permanecem em harmonia e unicidade. Neste ponto, se remanesce a prática de todas aquelas resoluções de ano-novo:  vou ser uma pessoa melhor; vou emagrecer; vou aprender uma língua; vou voltar a estudar; vou gastar menos do que ganho; vou deixar de fumar, entre tantas outras. Também permanece o fato de que se não fizermos nada para conseguir nossos objetivos, eles não serão alcançados pelo acaso.

É bíblico. Está em Gálatas 6-7-8, o que o homem semear, colherá. Deste modo, se não começarmos a praticar boas ações, não evoluiremos como seres humanos; se não comermos menos e se não fizermos exercícios, não vamos emagrecer; se eu não entrar em um curso e/ou dedicar meu tempo e esforço pessoal a um novo idioma, não aprenderei outra língua, e assim sucessivamente. (Tenho que semear para poder colher. Tudo o mais ou é autoengano ou irracionalidade).

Outra coisa que não mudou é que as resoluções de ano-novo normalmente não são alcançadas facilmente; e exatamente porque não são fáceis, demandam o reset, o zerar tudo, o começar de um novo jeito, ou como se diz modernamente, demandam um novo mindset que vem com a chegada do novo ano. Ou dizendo em outras palavras, e mais no real com cara de antigamente: demandam esforço, resiliência, força de vontade e determinação. (E que a primeira fraquejada pode levar tudo a perder...)

Mas o que causa uma certa angústia, é ver que muitas pessoas, em vez de se dedicarem de corpo e alma às semeaduras que podem efetivamente levar suas vidas para outro patamar, preferem semear ventos. Seja no sentido metafórico do semear ventos para colher tempestades, ou seja, de plantar confusões e colher atrapalhações e desatinos em profusão (pois o fruto é de regra sempre mais numeroso e maior do que a semente).

Seja no sentido de literal do plantar o vento, e colher o vento, como o pastel de vento, que se morde esperando algo de surpreendente, um gosto novo, um recheio delicioso: e o que se tem é mais do mesmo, a mesma massa, e de novo e de novo, o mesmo e o mesmo a cada mordida...

E o que fazer para não cair nesta armadilha? Esta talvez seja a pergunta do milhão, e como toda pergunta complexa, esta não tem evidentemente uma resposta simples. Mas como toda redação do ENEM tem que ter, em sua conclusão, uma solução para resolver problemas complexos da sociedade; penso que este texto também deva trazer alguma proposta, e daí uma mensagem para 2021. E, neste passo, ouso dizer que a resposta, para mim, está exatamente na busca do sentido.

 Tudo porque, o ser humano é carente de sentido. Se por um lado, ele é condenado, como dizia Sartre, a fazer suas escolhas. Os avanços da neurociência e da psicologia cada vez mais dizem que o ser humano tem que ver um sentido em tudo aquilo que faz, e que mais felizes são aqueles que têm um sentimento de propósito, de pertencimento e de transcendência em relação ao seu existir. E que fazem escolhas que levem a estes objetivos.

 Ou seja, mais felizes são aqueles que, por suas escolhas, conseguem fugir do imediato, do prazer efêmero e da recompensa instantânea. Aqueles que percebem as armadilhas que representam simples fugas do agora, mas que não preenchem as lacunas que são da alma. E que direcionam seus esforços para o que é sustentável e permanente, seja em termos de relacionamentos, de caminhos profissionais, de posturas sociais. 

Neste ponto, cada vez mais estudos científicos demonstram que é a conexão com o outro, a alteridade, a percepção de que participamos de algo maior, em harmonia e simbiose, é que são os maiores motores da satisfação e felicidade humana. (E de que apesar de parecer contracorrente, é na superação das tendências egoístas que a humanidade consegue sua maior cooperação, sua maior evolução, e sua maior felicidade).

Por isso, minha proposta para este artigo é exatamente essa: que possamos ter resoluções de ano-novo (todos nós) que sejam tendentes e sustentáveis em termos de construir um mundo melhor. E não se pense que isto é algo muito complexo ou surreal, pois se fizermos as seguintes perguntas, para cada ação ou decisão: - Isto melhora o mundo? Isto torna nossa sociedade melhor? Se a resposta for honesta, e a ação congruente, acho que muitas coisas ruins, inclusive aquelas tão famosas pequenas corrupções (e as grandes também) que afetam nosso dia-a-dia, poderão ficar no caminho.

E as tâmaras?  Já diz o provérbio que quem planta tâmaras não colhe tâmaras. Isto porque a tamareira naturalmente demora décadas para dar os seus primeiros frutos. Neste prisma, se se colhe hoje, é porque alguém plantou no passado; alguém que altruisticamente entendeu que sua missão para a humanidade era levar o legado de seus antecessores adiante, e aperfeiçoá-lo como a evolução da espécie humana tem procedido até hoje. Deste modo, se queremos mais desenvolvimento, se queremos mais prosperidade, se queremos mais consenso, se queremos menos desigualdade, se queremos mais felicidade, e se queremos vencer o Covid-19, façamos como quem planta tâmaras e vamos semear o futuro que sonhamos. Causa e efeito. Ele se tornará realidade.

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