Artigo: Mundo fora da ordem? O Carnaval que não houve, e o essencial que ensina: vacina, vacina, vacina

01/03/2021 19:18

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: Mundo fora da ordem? O Carnaval que não houve, e o essencial que ensina: vacina, vacina, vacina

Adorei o tema da redação do vestibular da Fuvest-SP deste ano. Mais do que uma reflexão direcionada a todos os jovens que tentam uma vaga na Universidade de São Paulo, a pergunta vale o pensamento ponderado de todos os seres humanos que partilham a vivência em nosso Planeta. A banca perguntou: - O mundo contemporâneo está fora da ordem? 

Será que sim? O que acha o leitor amigo? Será que estamos vivendo perplexidades nunca vividas ou imaginadas? Será que estamos caminhando em um fio da navalha entre pandemias, movimentos de globalização, tecnologia, relativização de conquistas sociais, dissensões e pós-verdades que nos levarão fatalmente a uma distopia? Ou será que não? Simplesmente porque a nova ordem que se impõe é assim mesmo? Permeada de novidades e novos normais onde o ineditismo e o assombro farão de nossa existência uma sucessão de surpresas, corações acelerados e frios na barriga, mas que no final, vai dar tudo certo?

Não tenho uma resposta definitiva (até porque, em um tema aberto como este, as linhas de argumentação são múltiplas e os caminhos a serem trilhados são vários). Talvez ninguém tenha. Mas o importante é que para o escopo do presente artigo, a resposta realmente não é o mais importante. Sim, a resposta é relevante em termos de firmarmos um caminho coletivo, mas ela, a resposta, a meu ver, ainda não está madura. Entendo que estamos em momento anterior, ainda antes desta tão intrigante resposta. Que estamos ainda no papel do estudante que ainda não escreveu a redação e que está conjecturando ideias e argumentos. Que estamos ainda no momento da reflexão. (Lembrando que nestes tempos de respostas prontas, de argumentações baseadas em torcidas, e supostas verdades que tentam prevalecer pela via da martelada e da repetição, a reflexão antes de qualquer resposta é absoluta pertinente).

 Assim, antes de responder à questão, é momento de perceber o momento ímpar que estamos vivendo e que este momento, como tudo que é peculiar, merece olhos e olhares não de conformidade, mas sim um olhar de estranhamento. (Um estranhamento como o do poeta e do filósofo que conseguem observar o instante, e desvelar dele, por mais comum que seja, o véu da obviedade, e revelar beleza, caminhos e lições universais).

Precisamos de um olhar que não aceite tudo como normal e que indague sobre causas e se pergunte acerca de efeitos. Necessitamos de olhos que vejam o dia-a-dia questionando: - será que não poderia ser diferente? Carecemos de olhos que expurguem o olhar que não vê; e que vejam, não o que se impõe (que de tão repetido, aceitamos às vezes por cansaço), mas sim o que poderia ser. (Até porque, aí vai uma certeza: em ordem ou fora de ordem, temos muito o que construir, melhorar, evoluir. E o primeiro passo do fazer é ter consciência de que se tem que fazer).

Precisamos, portanto, de reflexão e estranhamento no vivenciar do que estamos vivendo. E, em nosso momento atual, situações de estranhamento para a reflexão não faltam. Vimos, por exemplo, agora há pouco, por mais incrível que pareça, em todo o Brasil, o desenrolar de um Carnaval que não houve. 

Quem diria que as ruas de Olinda, a Marquês de Sapucaí e o Palco do Rasgadinho seriam silenciados? Quem iria imaginar que em vez de ecoarem para multidões, os frevos, os sambas, o axé-music e outros ritmos de folia tocariam apenas para saudosos em evocações e lembranças? Um inimaginável tornou-se real. Ruas mudas e vazias: o país do Carnaval, sem Carnaval, trazendo as perguntas: -  E daí?  O que virá de agora por diante? Que reflexões podemos tirar deste fato inusitado? Trataremos, de agora por diante, de duas lições que o não Carnaval e o momento atual nos trouxeram. Duas lições que num primeiro instante parecem apartadas, mas que, vendo com cuidado, de tão imbricadas, podem ser consideradas uma só.

A primeira lição é a de que o fato de não haver carnaval em 2021, não significa, de modo algum, que o Carnaval acabou. Não. O Carnaval permanece e permanecerá como expressão cultural arraigada das tradições e ritmos do povo brasileiro; e o Carnaval que foi sentido e sonhado em termos de nostalgia em 2021, voltará, com força total, assim que possível, no futuro, provavelmente em 2022. Voltará, como voltarão os abraços, os apertos de mão, o calor humano, as viagens e as comemorações (e tudo o que nos faz gregários, sociais e, portanto, humanos), quando superados os efeitos da pandemia do Covid-19. 

Voltará, mas voltará diferente, como tudo voltará diferente, esperamos com a marca do cuidado e do aprendizado, de que todos temos responsabilidade com o legado humano, com a continuidade da cruzada da experiência humana na face da Terra. Frise-se, neste ponto, como assevera o filósofo Hans Jonas, que a geração atual tem um dever para com a geração futura, para que esta, a que virá, possa usufruir de todas as benesses que foram construídas e conquistadas pelo labor, gênio e sofrimento humanos até o momento. Um dever consubstanciado no fato de que não podemos entregar para os nossos descendentes algo pior e mais pernicioso do que a experiência que nos foi entregue. (E temos que cumprir esta missão mesmo com Covid-19, e com todos os desafios que a modernidade nos traz).

Daí que, o Carnaval que foi, e que voltará. tenho certeza, serve de lembrança para nos dizer que o jogo social humano tem que continuar a ser jogado. Podem ser modificadas uma rodada ou outra, alterada uma ou outra regra. Partidas podem ser adiadas, evoluções podem ser antecipadas, mas o jogo tem que continuar. Como foi dito arduamente durante esta pandemia, o abraço suprimido de hoje, é a garantia do abraço futuro. O distanciamento de hoje, é a garantia da presença amanhã. 

E, nestes moldes, em breve o Carnaval voltará, comemorações coletivas voltarão, mesmo que em outros termos e com outros sentidos, porque, mesmo sob o signo da mudança, o ser humano continuará, e seu legado deve permanecer. Este é o dever ético de paciência, inteligência, resistência, sustentabilidade e resiliência que nosso enfrentamento ao Covid-19 deve manifestar.

A segunda lição que, como dito, pode parecer num primeiro momento antagônica à primeira, é a de que os tempos difíceis servem para mostrar em luz e cores nítidas o que é essencial; e que em vez de lamentarmos o efêmero que passa, temos que cuidar para que o essencial fique. Ou, dizendo em outras palavras, na dificuldade, em momento de escolhas, o essencial se apresenta, e temos que nos agarrar a ele. (Justo por ser essencial, ele não pode ser perdido, mas podemos perdê-lo, nos enganando com outros brilhos...)

Neste ponto, neste momento de estranhamento, temos que cuidar para não confundir o que é útil e é caminho; com o que é bastante em si e chegada no destino. Não procurar instrumentalizar fins e nem endeusar meios. Tudo que é útil serve para um fim. Sendo que, para nosso caso, o fim, o objetivo, a lição que deve ser manifestada, é a da necessidade da manutenção da dignidade humana em todas as suas acepções.

 Por isso, o não Carnaval passa, a privação do abraço passa, a celebração que não houve se esquece; tudo para que o essencial representado pelas vidas humanas com saúde fique. E isto não é apenas dever ético ou filosófico; isto é dever jurídico, na medida em que a Constituição brasileira elenca como um Princípio primordial, a Dignidade da Pessoa Humana. Então, nesse prisma, a vida com dignidade, que é representada pela vida com saúde, e pela garantia de todas as condições e oportunidades de possibilidades a todos os brasileiros, inclusive a busca da felicidade, deve ser assegurada a nossos cidadãos.

Assim, o Carnaval que não houve nos mostra, que sim o Carnaval é útil (útil para reforçar a alegria, os laços culturais, e até mesmo a economia), mas ele não é essencial. Essencial é salvar vidas e proteger todos do Covid-19. Sendo que o mesmo raciocínio vale para as disputas políticas pela paternidade de vacinas, para a busca de um discurso vencedor sem base na realidade (como se uma fake news pudesse, por encanto e negação, fazer aplacar a voracidade da epidemia), pela busca da vantagem individual em vez da coletiva. Condutas que fogem do essencial (e vão cada vez mais longe dele), e que são somente úteis aos seus protagonistas, mas completamente inúteis a nós outros que vivemos o dia-a-dia de perdas de parentes e queridos amigos.

Temos, por óbvio, que o essencial neste momento é garantir condições de sobrevivência a todos, o que significa conseguir tratar todos os doentes, evitar que os sistemas de saúde colapsem, assegurar que a pandemia não se espalhe ainda mais (e aí, as medidas de contenção de aglomeração, distanciamento social, e uso de máscaras são primordiais); vacinar o maior número de pessoas, no menor espaço de tempo (neste ponto, quando algo é essencial, a prioridade é providenciar e não buscar melhores argumentos de justificativa por não fazê-lo...). 

Vale muito, nesta questão, que prevaleça o “missão dada é missão cumprida”; e, assim, garantir medidas sociais efetivas para que não fiquem pessoas à margem da cidadania em vulnerabilidade social. Dizem que não conseguimos olhar para mais de um lugar ao mesmo tempo, mas em tempo de buscar essências e essenciais, temos que nos desdobrar para que vida e economia se comunguem, lembrando que a economia é útil, exatamente para que a vida humana se apresente e floresça em toda sua dignidade. (E uma palavra, que une saúde e economia no presente momento, é sem dúvida vacina).

E é exatamente neste ponto que as duas lições se encontram: por mantermos o essencial, o jogo humano continua a ser jogado, e Carnaval, celebrações, atividades econômicas, e tudo o mais que é útil, permanece; e também permanece a humanidade, e consequentemente tudo o mais o que aprendemos como eticamente relevante e fundamental: garantir dignidade e condições plenas de possibilidade a todos os seres humanos.

Por isso, e aí voltando à pergunta da Fuvest, feita a reflexão, e sem não mais resistir a tentar dar um primeiro passo a respondê-la, já que quando mandam a gente não pensar em um elefante azul, a primeira coisa que pensamos é exatamente nele; meu sentimento é de que sim, talvez o mundo contemporâneo esteja realmente fora da ordem. Mas arrisco dizer que menos por causa da pandemia, já que outras tragédias e doenças virulentas já assombraram a humanidade no passado; e mais pela incapacidade ainda de muitos e tão importantes protagonistas enxergarem o óbvio essencial que se apresenta. É preciso coesão social no foco que a dignidade humana anseia e ensina; o que para mim, nos tempos atuais tem um mantra, um pedido de socorro que clama, uma ordem que ordena: - vacina, vacina, vacina.

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