Artigo: Maria Helênica és tu

26/02/2021 12:24

Por Luiz Eduardo Oliva


Artigo: Maria Helênica és tu

Num dos mais conturbados períodos da vida social e política sergipana uma mulher se fez testemunha e personagem e atravessou os anos guardando histórias e segredos de uma cidade que se destaca por fatos políticos, pela tipicidade única de seu povo, por uma cultura própria. Itabaiana é essa cidade e a mulher é Maria Helena Silveira que por mais de meio século pontificou a vida social, sob alguns aspectos política e, sobretudo jurídica daquela cidade.


No início dos anos 60 a política sergipana ainda vivia à base da violência e muitas questões se resolviam “no trabuco” como se costumava dizer. Naqueles anos o acontecimento mais dramático da vida política do Estado foi o assassinato do líder político Euclides Paes Mendonça, deputado federal e seu filho Antonio Oliveira, deputado estadual. Antonio era namorado de Maria Helena que recebeu todo o impacto daquele brutal acontecimento e suas consequencias pelos anos seguintes. Maria Helena, contudo não era somente a namorada do deputado assassinado: era escrivã da Comarca e foi instada a acompanhar todo o desenrolar forense dos acontecimentos pelo ofício que exercia. A cidade dividida, as facções políticas se digladiando, outros acontecimentos trágicos se sucederam. Maria Helena, todavia manteve-se incólume, com consciência profissional inabalável, guardando segredos, angariando o respeito de absolutamente todos os magistrados que passaram por aquela comarca até ela se aposentar em 2008 da condição de escrivã do fórum e continuou exercendo suas atividades como Tabeliã do 2º Ofício, Cartório que herdou do pai Zeca Mesquita, de um período em que os cartórios eram quase que hereditários.


Maria Helena Silveira iniciou sua vida pública bem nova, auxiliando o pai no cartório onde conheceu o grande magistrado e escritor Luiz Magalhães que viria a ser desembargador e membro da Academia Sergipana de Letras. Encantado com a vivacidade daquela adolescente já exercendo o ofício ao lado do pai, logo a apelidou de Maria “Helênica”, certamente remetendo à bravura e tenacidade das grandes mulheres gregas, no padrão da própria cultura helênica que Luiz Magalhães tão bem conhecia. Maria Helena teve naquele grande intelectual seu ídolo para o resto da vida, com ele aprendeu os meandros do processo, a conduta ética no conduzir do trabalho e na importância de guardar segredos de justiça e, de forma autodidata se aperfeiçoou. Mesmo sem ter a formação em direito era uma espécie de guia dos magistrados, sobretudo os mais novos. Ouvi de muitos: “aprendi processo com Maria Helena.”


Há menos de um ano João Andrade, itabaianense de quatro costados dizia: “alguém precisa entrevistar Maria Helena por horas e da sua memória retirar muito da história de Itabaiana desde os anos 50. Ela talvez seja o maior arquivo vivo da minha terra”.


Vladimir Souza Carvalho, esse notável magistrado e intelectual itabaianense – presidente do TRF da 5ª Região (composto por 6 Estados nordestinos) tinha por ela incondicional admiração. Em um primeiro artigo, publicado em 2015 no Correio de Sergipe dizia: “o tempo a transformou na grande e infalível testemunha de todos os acontecimentos forenses, ocorridos na comarca de Itabaiana, como a conheci, menino ainda, a vê-la, de longe, na sala da Prefeitura, transformada em fórum, a dedilhar a máquina de datilografia numa rapidez e precisão que sempre me impressionaram; a levar feitos para despachos do juiz de então, se transformando em guardiã dos segredos que das ante salas não saiam - v. g., a passagem pela casa de Euclides com os processos em mão, e, de cada, oferecer as explicações devidas, a fim de receber o sinal verde ou vermelho para seguir ou parar, de acordo com a cor partidária das partes -, catalogando em seus cadernos a aprendizagem captada do contato com os diversos magistrados que por lá passaram, tirando do semblante de cada um a capacidade de vôo”.


O médico sanitarista Antonio Samarone, outro itabaianense de quatro costados e também como Vladimir da Academia Itabaianense de Letras escreveu, no dia 25 de janeiro artigo onde dizia: “Quando a vida cultural de Itabaiana girava em torno da sacristia, e ser “Filha de Maria” era o principal desejo das moças, Maria Helena já era livre e dona do seu nariz.n Uma mulher independente. Uma pioneira da liberdade feminina em Itabaiana. Maria Helena era a dona do Cartório, rica para os padrões do interior sergipano, daquela época. Mas sempre gentil com todos. Viver, sem dar satisfação para o disse-me-disse da Aldeia Serrana, não era pouca coisa. Itabaiana invejava e admirava Maria Helena, ao mesmo tempo.”


Eu tive o privilégio de conhecer e conviver por 30 anos com essa mulher extraordinária, fora de curva por assim dizer, mãe devotada, avó amabilíssima, amiga leal e sogra para genro algum botar defeito. Mas não sou de Itabaiana e tudo que for dizer tem mais a ver com um sentimento do coração, quando a isenção pede que se destaque Maria Helena pelo que ela representou e representa como símbolo de uma mulher à frente do seu tempo, capaz de entender as adversidades da vida e conduzir de maneira impecável a própria vida profissional. Voltar, portanto a Vladimir é trazer a síntese dessa mulher símbolo. No último dia 31 de janeiro, no Correio de Sergipe Vladimir publicou artigo que também traça um pouco da sua personalidade única.


Do artigo pincei esse trecho: “Maria Helena caminhou sempre em direção contrária ao atraso da província. Não deixou que os cancelos vedassem seu caminho. Ousou, trilhou, bordou e pintou o sete, a experiência que o tempo lhe adornou, o perfeito domínio de suas atividades, a cordialidade reservada a todos que se esgueiravam nos balcões do cartório, a palavra amiga, dentro de sua conduta de filha, de irmã, de esposa, de mãe, de escrivã, e, sobretudo de mulher, que sempre soube ser, de cabeça erguida, vivendo em Itabaiana como se estivesse em Paris, indiferente a todos por já ter nascido vacinada contra a língua alheia. Penso que no íntimo da cabeça, se incomodada alguma vez, deve ter dado boas bananas.”


Na vida aracajuana - onde se mudou nos anos 90 (embora retornasse diariamente à sua terra para exercer o seu ofício) porque a capital sergipana possibilitaria melhores oportunidades às filhas e filho que criou sozinha – ela gostava também de freqüentar restaurantes – o extinto La Maison era o predileto – e o Shopping Riomar. Nunca quis ter carro, gostava de andar de taxi e de tanto ir ao shopping os taxistas achavam que ela era dona de uma loja. Ali, nas tardes, quando chegava da sua Itabaiana, raro eram atendentes de loja que não conhecesse ou não lhes fizessem amizade.


Na noite também fazia amizades. Tratava a todos sem distinção e nos bares e restaurantes que frequentava era queridíssima dos garçons principalmente. No La Maison, ao apontar na porta o pianista Gilberto avistando-a logo dedilhava os acordes iniciais de uma velha e conhecida canção composta nos anos 30 pelo mexicano Lorenzo Barcelata (versão brasileira de Haroldo Barbosa) e imortalizada na voz de Altemar Dutra: “Maria Helena és tu/A minha inspiração”. João, o garçom passou então a tratá-la sempre por “Maria Helena és tu” com o mesmo carinho que Luiz Magalhães chamava-a de “Maria Helênica”.


Maria Helena Silveira teve uma vida intensa, rica nos mais diversos aspectos. Mas também enfrentou grandes dificuldades como o drama que viveu na juventude citado logo no início deste artigo. Mas viveu superando as adversidades, fazendo amigos, distribuindo amor. Tinha a caridade no coração, esse mesmo coração que como disse o seu amigo Vladimir, “não agüentou o rojão da dona”. Como naquela velha canção, no dia 25 de janeiro aos 82 anos, Maria Helena foi “a verbena que murchou”. Maria Helena era a minha sogra.

Luiz Eduardo Oliva é advogado, poeta e membro da Academia Sergipana de Letras Jurídicas.

 

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