Crônica: Choque Cultural - Por Juviano Garcia

04/02/2021 07:10


Crônica: Choque Cultural - Por Juviano Garcia

CHOQUE CULTURAL

Parafraseando certo líder político brasileiro, atrevo-me a afirmar que nunca, na história do mundo, foi tão verídico o termo criado pelo filósofo canadense Herbert Marshall McLuhcan: “O mundo é uma aldeia global”. Hoje, graças à veloz e imensa evolução dos meios de comunicação impingida pelo advento da informática, dos satélites de comunicação e da internet, nos mais recôndito quinhão deste planeta tem-se informações, em tempo real, de qualquer parte do mundo. Mas até bem pouco tempo, as coisas não eram assim. Basta retrocedermos um pouco aos idos da década de 1960, para encontramos pessoas que viviam quase que completamente isoladas do mundo que se encontrasse além seu pequeno povoado. Um exemplo disso eu tentarei transmitir neste pequeno texto.

Sinhozinho da Batinga era proprietário de boas mil tarefas de massapê nos cafundós do Judas, onde residia com sua esposa Mariinha e seu filho Zeca. De lá só saía para negociar seu gado e para ir à feira na cidade onde tinha uma casa somente para essas ocasiões e, mais tarde, para servir de moradia a Zequinha, quando este foi estudar o ginásio, como era conhecido na época, o período compreendido entre a quinta e a oitava séries do primeiro grau. Acompanhava o menino na cidade, para cuidar da casa, fazer as refeições, lavar e passar, dona Zuzu, solteirona irmã de seu vaqueiro Aprigio, ambos de imensa confiança e detentores de grande estimação por parte de seu Sinhozinho e de dona Mariinha.

Aprigio nasceu e se criou na fazenda e de lá só saía com seu Sinhozinho, quando este precisava trazer da cidade alguma carga no carro de bois. Aprígio era excelente carreiro. Os bois o obedeciam apenas por um pisar seu na mesa do carro ou quando lhes chamava pelo nome; do mundo exterior quase nada conhecia. Numa dessas idas a Dores, Sinhozinho foi com Aprígio até o açude dar água para os bois e ficou admirado com o tamanho do “tanque”, muitas vezes maior que os que haviam na fazenda.

Quando Zequinha concluiu o Ginásio Sinhozinho comprou uma casa em Aracaju para onde mandou o rapaz, sempre acompanhado de dona Zuzu, a fim cursar o Científico. Queria que o filho se formasse Doutor. A Vila Eunice, aonde veio morar, era bem perto do Ateneu, onde estudava. Zequinha foi se enturmando com os colegas, começou a freqüentar o Cacique Chá, a Sorveteria Iara, a praia de Atalaia e a gostar das músicas da Jovem Guarda; era fã de Jerry Adriani e de Vanderlea. Nas férias de junho levou para a fazenda um gravador portátil Phillips, com varias fitas gravadas com suas músicas, preferidas, dentre elas algumas dos Beatles, exemplares da revista Manchete e o romance “O Gaucho” de José de Alencar.

Certa tarde, na fazenda, enquanto ouvia as músicas de Renato e seus Blue Caps, dele se aproximou Aprigio e lhe perguntou:

- Que diacho de cantiga é essa Zequinha?

- Ah, seu Aprigio! Isto é iê iê iê,, o ritmo dos jovens da cidade, da jovem guarda.

- Sei não viu? Parece mais um comboio de ferreiro batendo enxada.

Zequinha foi ao seu quarto e trouxe uma Manchete com a fotografia de Erasmo e Roberto Carlos estampada na capa para mostrar ao velho vaqueiro. Quando este olhou a foto exclamou admirado:

- Quem diabo são essas duas muié aí, com cara de macho?

- São homens, seu Aprigio. São os cantores dessa música que o senhor ouviu há pouco. É que a moda agora é os homens deixar os cabelos crescerem.

- Esconjuro, satanás de rabo! Isso é lá homi, isso aí é dois amaricados. Oi só as calças deles. Agarradas nas pernas que nem casca de pau ferro. Tá doido?

Faz-me lembrar da música de Luiz Gonzaga: “No sertão de meu padrinho cabeludo tem vez não.”

Meses depois desse ocorrido Aprigio começou a sentir fortes dores no abdômen e Sinhozinho levou-o até o médico em Dores, que diagnosticou uma possível apendicite e recomendou levá-lo ao Hospital de Cirurgia. Confirmada a apendicite, foi determinada para o dia seguinte uma cirurgia. Antes do internamento Zequinha levou Aprigio para ver a Ponte do Imperador. Quando este pôs os olhos no Rio Sergipe, de tão extasiado, apenas conseguiu sussurrar:

- Que açude grande!

- Zequinha sorriu e replicou:

- Seu Aprigio, quando o senhor receber alta da operação eu vou lhe levar para conhecer um maior ainda.

Quando o velho saiu do Hospital Zequinha chamou um taxi e o levou à Atalaia. Desceram na frente do Vaqueiro, atravessaram a pista e, ao avistar o mar, Aprigio entrou em êxtase. Passou vários minutos boquiaberto, sem conseguir balbuciar nenhuma palavra. Só então pode por os olhos na areia e aí outra surpresa estarrecedora: Dezenas de mulheres de biquínis, deitadas na areia escaldante da praia.

- Zequinha, meu fiu, que imoralidade da peste é essa? Uma ruma de rapariga nua no meio da rua. Tá ca gota serena. Vamo simbora desse cabaré do mei da rua.

Somente ao se voltar para o lado da pista foi que Aprigio notou os carros estacionados em fila, na calçada da praia.

- Eita istopô! Nunca vi tanto carro na vida! Mas não tem um só parecido com o jipe de seu Manequinha do Poção. Esses daqui parecem mais uma ruma de besouro rola bosta.

À tarde Zequinha convidou seu Aprigio para ir ao cinema.

- O qui é isso, minino?

- É um lugar cheio de cadeiras aonde a gente vai assistir uma peça de teatro como no circo. Lá o senhor vai ver.

E levou o velho ao cine Vitória, que exibia “No Tempo das Diligencias”, com John Wayne. Da frente do cinema, que ficava na rua Itabaianinha, Aprigio avistou o edifício Cidade de Aracaju – o Maria Feliciana – e virou-se admirado para Zequinha, perguntando mais uma vez:

- O qui é isso, minino?

- Isto é um edifício, uma casa com muitos andares, que se alcança subindo de escada ou de elevador, uma caixa onde a gente entra, aperta um botão ela sobe para onde a gente quer.

- Tá com a cabrunca. Eu mesmo que não entro numa peste dessa.

Ao entrarem na sala de exibição o filme já estava começando. Aprigio, vendo-se no escuro, exclamou:

-Ô Zequinha, que lugar dos diabos é esse? A gente acabou de entrar com o sol alto e na mesma hora vira de noite.

Começa o filme e Aprigio se delicia com a paisagem que lembra o seu sertão, os cavalos bem tratados, vaqueiros em trajes típicos, quando, de repente, inicia-se um tiroteio e Aprigio não hesita um só segundo. Escorrega para baixo da cadeira e puxa também Zequinha.

- Minino, vamo simbora daqui antes da gente tomar um tiro.

De volta à fazenda, seu Sinhozinho lhe pergunta se gostou de Aracaju.

- Sinhozinho, eu prifiro morrer dessa tal de pendiciti do que por meus pé naquele inferno da pedra!

Compartilhe

Veja Também

Receba Notícias Pelo WhatsApp