Crônica: Salvo por Nossa Senhora

23/02/2021 11:54

Por Marcos Melo


Crônica: Salvo por Nossa Senhora

Marcos Melo (*)

Encarregado de hospedar, alimentar e embarcar nos preguiçosos trens da Ferrovia Federal Leste Brasileiro centenas de famílias flageladas pela seca que chegavam diariamente a Propriá, vindas de Alagoas e procedentes dos estados castigados pela estiagem, o dinâmico funcionário do Instituto de Imigração e Colonização – INIC, José Soares Torres, dava tudo de si para minorar o sofrimento daquela gente que se destinava ao Sul e também à Brasília, àquela época em construção, na perspectiva de conseguir emprego e melhores condições de vida.

Sem dúvida, uma faina penosa e muito estressante. De fato, assistir ao vivo e em cores, aquela “Triste Partida”, como genialmente poetou o cearense Patativa do Assaré ou escutar a dorida “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, era de cortar coração. Mas, o exemplar funcionário cumpria com o maior desvelo e determinação seu duro labor.

Tinha o reconhecimento e apoio do chefe da repartição, o empresário José Neto, dirigente do Partido Republicano – PR e presidente do América Futebol Clube, aliás, um grande presidente, como também, do jovem advogado Antônio Viana de Assis, procurador, que mais tarde se elegeria deputado estadual, pelo PR, e que seria cassado pelos militares em 64.

Para minorar o enorme desgaste emocional e o cansaço físico pelas movimentações que tinha de fazer, de hospedagem e embarques dos retirantes, Soares, que também era professor de Ciências, no Ginásio Diocesano de Propriá, diga-se, respeitadíssimo e cumpridor de seus deveres no magistério, antes do almoço passava no bar de Zé Braga, que ficava no andar superior de uma sapataria no Beco do Taboão, para o papo do meio dia regado a aguardentes de diversos calibres, harmonizadas com Bramhas e Antárticas, as únicas cervejas da época. Era uma forma dele aliviar as tensões. Falava-se de tudo, especialmente de futebol, já que se tratava de um reduto de torcedores e atletas do Esporte Clube Propriá e, eventualmente, da vida alheia. Às 6 hs, da tarde, reuniam-se novamente para empacotar o dia com a chegada da noite.

Com o passar do tempo, Soares sentiu que aqueles tragos habituais, cada vez mais robustos e prolongados, estavam prejudicando sua vida profissional e familiar, pois, como amador, no meio daqueles profissionais, não conseguia dar conta da hora de parar, de bater em retirada. Mas, como ir embora, se o ambiente era prazeroso e até mesmo musical pelas presenças do excelente cantor Zé Saita acompanhado pelo violão de Oséas? E tome-lhe sambas de Orlando Silva, Sílvio Caldas, Nelson Gonçalves e quejandos. Desce mais um pingado (aguardente Guaiamum com Cinzano) e uma loura suada, Braga! Zé, cante aquela...

Inteligente e bem informado, Soares percebeu que tinha ficado alcoolista, em face dos inúmeros problemas e transtornos que a dependência acarreta. Decidiu, então, largar a bebida. Tentou várias vezes, mas, como sói acontecer, vinham as recaídas. Desesperado, procurou ajuda. Dr. Heraldo lhe receitou uma garrafada, que não resolveu, apenas lhe embrulhou o estômago. Maria Muiezinha fez-lhe uma reza, sem sucesso. Pai Abílio bateu os tambores no seu terreiro, mas os orixás não atenderam.

Àquela época não havia os Alcóolicos Anônimos em Sergipe, grupo de autoajuda, surgido nos Estados Unidos, de grande eficácia para quem, realmente, quer largar o hábito de beber, cujo lema é: “Se queres beber, o problema é seu; se queres parar, o problema é nosso”. Aqui, o primeiro grupo de AA foi criado no início da década de 1970, pelo psiquiatra Hamilton Maciel, um contumaz abstêmio que só bebe suco de uva.

Portanto, tudo iria depender, unicamente, da força de vontade de Soares. Ele, então, num final de tarde, na hora da Ave Maria, sem mais para quem apelar, lembrou-se de Nossa Senhora e, em prantos, pediu que lhe desse forças para largar a bebida. A Mãe Santíssima ouviu aquela súplica comovente e o atendeu. 

Extinto o INIC, Soares foi realocado no INCRA, em Aracaju. Na capital, dedicou-se aos estudos e gradou-se em Direito e Economia. Aprovado, com distinção, foi nomeado advogado da instituição que cuida da reforma agrária no país. Aposentou-se como procurador. Foi, também, um competente professor de Direito Agrário, na UNIT, segundo depoimento da advogada Maria Helena Souto Varella, que foi sua aluna.

Reside em Aracaju, mas tem casa em Propriá. Sempre que está na ribeirinha, comparece às missas na capela de Nossa Senhora, sua protetora, no Hospital São Vicente de Paula. Aos 85, é membro da Academia Propriaense de Letras onde ocupa a Cadeira Nº 4 do Sodalício.

Em conversa com o novelista Roberto Calazans sobre a milagrosa história de superação de Soares, ele me contou uma passagem quando de sua fase aguda de alcoolista. Seu aluno, no Ginásio Diocesano de Propriá, em face da polêmica se o corpo humano tinha 206 ossos ou 204 e 2 vértebras, Roberto perguntou ao professor de Ciências qual era a quantidade exata de ossos. Soares, visivelmente tungado e tremulando as mãos, respondeu peremptório: “Roberto, são milhões de ossinhos incontáveis.” No ato, o aluno replicou: “Só se depois de atropelado por um Fênêmê.” Era o troncudo e fumacento caminhão FNM, de fabricação nacional, dos tempos de Getúlio Vargas. Haja ossos para serem contados!

(*) Professor emérito da UFS e membro da ASL.    

                

  

        

 

       

Compartilhe

Veja Também

Receba Notícias Pelo WhatsApp