Crônica Paixão Traiçoeira - Por Juviano Garcia

04/06/2021 13:15


Crônica Paixão Traiçoeira - Por Juviano Garcia

PAIXÃO TRAIÇOEIRA

Por Juviano Garcia

Estamos nos idos da década de 1970. No Brasil o regime militar entra no seu período mais repressivo, em que a caça aos comunistas se intensifica, as prisões de suspeitos se tornam corriqueiras, como também a tortura desses indivíduos. Os intelectuais, os artistas e os universitários, por serem os grupos mais envolvidos com o pensamento e os movimentos socialistas, são as categorias mais visadas. Nas Universidades públicas são criados órgãos subordinados diretamente ao SNI, em geral denominados de Assessoria de Segurança e Informação, por cujo crivo passam as contratações de servidores (docentes e técnico-administrativos), o acompanhamento do comportamento dos mesmos e até os discursos de formatura dos estudantes.

O antigo sistema seriado é substituído pelo sistema de créditos, que dificulta a formação de turmas homogêneas durante todo o curso e é criada a disciplina Estudo de Problemas Brasileiros, para a qual os professores selecionados são obrigados a fazer um curso de especialização na ADESG (Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra).

A despeito de todos esses “instrumentos de repressão”, formam-se grupos de estudantes ligados ao PC do B ou ao PCB, que difundem nas Universidades as ideias comunistas. Os cursos onde vicejam mais intensamente esses grupos são os de Direito, Economia, Sociologia, História etc. É aí que surge a grande utilidade do sistema de créditos para o regime militar: a cada semestre surge nesses cursos um aluno novato “transferido compulsoriamente de outra Universidade por ser servidor público designado para trabalhar naquela cidade”. Logo a turma percebe ser um espião do governo.

É nesse cenário que se desenrola a história de Chicão, estudante de Direito, líder estudantil, ativista do PC do B. Na sua turma já tinha conquistado a adesão de alguns colegas como Priscila e Alberto. A exceção da turma é Lucio, excelente aluno, vindo de escola pública do interior do Estado, que não participa de nenhuma conversa sobre política, não se manifesta contra nem a favor do regime militar. Como estão sempre observados pelo tal “aluno transferido”, nunca manifestam suas opiniões políticas nos próprios da Universidade.

Inicia-se o quinto período e, para surpresa de todos, não aparece nenhum transferido. Os dias passam, Chicão e Priscila ficam mais à vontade para catequizar os colegas e assim conseguir mais adeptos para a causa. No segundo mês de aula eis que surge na turma uma nova aluna transferida do Rio de Janeiro, “por ser filha de um Engenheiro da PETROBRAS”. Diana é o seu nome, jovem alta, longilínea, de longos e lisos cabelos negros como uma noite sem luar, olhos verdes escuros, manequim estonteantemente linda.

Os marmanjos da turma esquecem-se das demais colegas e só tem olhos e papo para Diana. Chicão não perde tempo e se aproxima da menina, conquista sua simpatia e, com o passar do tempo, vai adquirindo confiança nela e procurando leva-la a fazer parte do seu grupo político, de suas reuniões etc. e, sem se aperceber, começa a se apaixonar.

Já próximo ao final do semestre Diana confessa a Chicão que seu pai também é simpatizante da causa e que gostaria de conhecê-lo, para trocarem ideias. Dias depois ela lhe traz um convite (verbal) para participar de um jantar no clube da PETROBRAS, no qual o seu pai iria lhe apresentar colegas envolvidos com a causa. No dia aprazado Diana vai apanhar Chicão em sua casa, dirigindo um opala do ano, num estonteante vestido amarelo e, quando o rapaz entra no carro, lhe recebe com um caloroso beijo.

Chegam ao local do jantar e Diana o conduz até seu pai que traja uma farda verde oliva, uma verdadeira constelação dourada no peito e uma pistola na cintura. Chicão empalidece, as pernas cambaleiam, olha para Diana com vontade de fuzila-la. O homem é o comandante do Batalhão do Exército no Estado. Segura Chicão pelo braço esquerdo e o conduz a uma sala reservada onde inicia o seguinte monólogo:

- Meu rapaz, Diana tem me deixado a par do seu apreço pela Revolução, tem me mostrado o quanto você pode ser útil à Pátria, por isso o Exército brasileiro, por mim representado neste Estado, resolveu lhe conceder esta grande glória de servir à Nação.

A partir de hoje você vai ser os nossos olhos e os nossos ouvidos na sua Universidade. Diariamente vai me trazer informações detalhadas sobre tudo que os comunistas tramam naquela instituição. Segunda-feira, pela noite espero você com o primeiro relatório. Não deixe de vir nem que chova canivete. Agora vamos tomar um whisky e jantar, quando eu lhe apresentarei aos meus colegas de farda.

Durante todo o restante da noite Chicão não ouve nem vê mais nada; fica como que hipnotizado, só pensa em fugir daquele lugar. Termina o jantar e o comandante ordena um praça a levar o pobre homem em casa.

A partir de então Chicão desaparece da Universidade, dos encontros do grupo ativista de que faz parte e nunca mais é visto na cidade. Chega o momento da formatura e Priscila é escolhida oradora da turma. O diretor da Faculdade lhe solicita uma cópia do discurso para ser submetido à análise da ASI. Minutos antes do início da cerimônia ela recebe de volta o discurso, completamente modificado, com a recomendação: “Não leia uma só palavra diferente do que está aqui expresso.”.

Trinta anos depois a turma se reúne para comemorar o aniversário da formatura e o assunto é... Chicão. Ninguém tem notícias do homem até que Lucio, agora mais prolixo, jura tê-lo visto em um convento franciscano em São Paulo. Será?

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