Conto: O último filme da vida - Por João Augusto Bandeira de Mello

16/09/2021 05:57


Conto: O último filme da vida - Por João Augusto Bandeira de Mello

CONTO: O último filme da vida.

João Augusto Bandeira de Mello

            

Querido leitor, querida leitora, hoje é o fechamento de um ciclo, e o início imediato de outro. Tenho publicado aqui no Radar, mensalmente, artigos opinativos sobre temas diversos, expondo minhas impressões, memórias; meus flashs de percepção sobre o nosso existir no mundo. Algo que muito me alegra e me completa, e que é motivo de imensa gratidão ao espaço que o Radar Sergipe me proporciona e ao carinho do contato e da leitura de cada um de vocês.

E, após trinta e quatro artigos publicados (que serão brevemente reunidos em um livro), resolvi caminhar para além da seara opinativa-dissertativa, e compartilhar também, aqui na coluna, outras incursões no reino da escrita e da linguagem.

Neste sentido, nas próximas semanas e meses, ou seja, neste próximo ciclo; trarei, junto aos já tradicionais artigos, outros escritos:  contos, contos-poéticos, mais detalhes sobre a estória de Edutriv (que de vez em quando aparece nos artigos). Sempre pedindo a paciência do querido leitor e da querida leitora e agradecendo o enorme prestígio que é alguém separar um momento de sua vida, para ler algo que a gente escreve.

Começo este novo ciclo com um conto, meio estilo black-mirror (futurista distópico), que apesar de narrado em primeira pessoa, graças a Deus, não tem relação direta com minha experiência de vida pessoal. Espero que gostem da leitura do “O último filme da vida”. Abraços a todos.

 

Ainda me lembro da primeira vez que fui a um cinema. Como esquecer do vermelho vivo do hall de entrada; da pipoca que voava no vidro do balcão; dos mil doces que me tentavam, representando porções externas de alegria?

Recordo-me de olhar de instante em instante em meu relógio do Mickey, para ver se já estava na hora de o filme iria começar. O Mickey parecia sorrir de cumplicidade. Já eu parecia sorrir de nervoso...  Os braços do Mickey rodavam com vagar; pareciam querer eternizar o momento – quem dera aquele início glorioso perdurasse até o final, o final mesmo...

A experiência, hoje, é semelhante, mas infelizmente nem de longe sinto a mesma alegria. Nem poderia sentir. O nascer do Sol é alegre porque cheio de possibilidades; o ocaso é melancólico porque simboliza uma partida.

Não havia como ser igual, não tinha porque ser igual. A experiência é semelhante, mas profundamente diferente.

O vermelho vivo e alegre da entrada do cinema foi substituído por um frio branco balcão de recepção, permeado de moças e rapazes solícitos e operantes. Todos usavam uma farda meio acinzentada e eram rápidos em fazer leituras de implantes neurais e preencher os formulários nas estações de trabalho. A checagem da íris e do implante é rápida (praticamente não há o que fazer), mas no meu caso específico, de espectador de última hora, alguns cuidados têm que ser observados, e fazem com que o tempo de atendimento se alongue.

Diz o manual de operação que eu ajudei a redigir, em linguagem clara e esquemática: atenção ao marcador do relógio digital que repousa no pulso, pois o tempo é relevante para que o objetivo seja cumprido, e deve ser informado na planilha de prioridades; deve-se manter a cordialidade e a empatia, sem que se descambe para a pena ou piedade – deve-se, portanto, saudar o espectador para que este se sinta acolhido, porém, sem cargas emocionais excessivas que gerem distúrbios, choros ou cenas (Este é um procedimento como outro qualquer, explica o manual).

O relógio também era uma diferença marcante. O simpático Mickey foi substituído por um cronômetro regressivo ligado por tecnologia Bluetooth ao implante neural e ao leitor de sinais vitais. E diferente do Mickey, que parecia ser um apresentador de momentos felizes e vibrantes; o cronômetro era um arauto do fim e do nada.

Seis horas para o momento fatal e contando. Eu quis por vontade própria fazer parte da primeira geração de homens e mulheres que saberiam o momento exato de sua própria morte. O assunto é polêmico, reconheço. Uma vez ouvi dizer que os ciclopes, por exemplo, sabiam o momento exato de sua morte, e por isso viviam taciturnos e angustiados. Nunca confirmei a veracidade do mito, mas aquela ideia ficou em minha cabeça: - seria bom saber o momento exato da morte? Eu quis saber.

 Se eu titubeei na hora de colocar o relógio? Claro que sim. Mas como investidor, eu tinha que dar o exemplo. E apesar do desatino do projeto, nossos brilhantes especialistas em consumo tinham ideias mágicas de como seria útil este cruel artefato.

Diziam, por exemplo, que seria muito útil para grandes empresários prepararem suas sucessões, dividir bens em vida e despedirem-se de suas famílias. Ou mesmo, quem sabe, para gastar tudo que tinham e não deixar nada para ninguém...

Era o meu caso (de grande empresário): sempre lógico e racional, ensinei a meus filhos o valor do dinheiro:  – Crianças, por trás de todo preço, ação e amizade, há sempre uma conta matemática... -- Acumular riqueza é uma garantia de futuro, e de respeito. O dinheiro move o mundo e as pessoas. Metafísica é para sonhadores empobrecidos....

O estranho é que no exato momento em que eu soube o exato instante em que eu partiria, senti um efetivo desconforto. Desconforto que aumentou quando meus filhos souberam o momento azado da partida. Não sei se foi paranoia ou surgimento de complexo de inferioridade por ter iniciado celeremente minha caminhada em direção ao meu desfecho. Mas de todo modo, percebi um sentimento diferente de meus filhos em relação a mim.

Imaginei no início que eram atitudes desconcertadas, fruto da pena e da saudade antecipada. Que certa impaciência e diminuição de cuidados fossem fruto da tristeza com a fatalidade que se aproximava. Que as falas reiteradas em relação ao futuro deles fossem o medo de repisar o presente de minha tragédia.

Mas a dúvida cresceu a ponto de eu enxergar neles um alívio crescente, que atinge seu apogeu no dia de hoje. Vi caras de sonho e até planos para depois deste dia. Quero estar enganado, mas o fato de eu chegar sozinho ao espetáculo final é um triste indicativo. Todos prometeram estarem comigo no momento do desenlace. Ainda não chegaram.

A solidão e a mágoa normalmente não são boas analistas de sentimentos alheios. Deixo as reclamações de lado. Sei da importância de minhas últimas memórias, pois estas farão parte do conjunto que ficará registrado na eternidade.  Farão parte do meu legado. (E quando se parte, o legado é o último alento...). Tento, portanto, que minha memória registre os momentos bons que passamos, e que a solidão e a mágoa não corroam o fechamento do ciclo.

Fecho o olho, e o vazio me invade. Tento falar, mas parece que um eco reverbera. Tento fazer tudo importar. Mas o que importa neste momento, e o que obsessivamente me toma, é o fato de que estou sozinho.

- O procedimento começará em cinco minutos, diz a atendente com uma frieza gentil. Percebi que ela olhou de relance para meu relógio. Deve ter pensado: cinco horas e quarenta cinco minutos são suficientes. Os filmes nunca duram mais de três horas, tendo normalmente a duração de uma hora e quarenta e minutos. Tempo que permite ver o filme, chorar um pouco, ter com os parentes, despedir-se e ir para a sala do adeus, onde soníferos são administrados para que a morte venha dormindo.

Ela se despede, falando no pequeno rádio da lapela, certamente indicando os passos para a próxima etapa. Etapa onde outra atendente fria e gentil cumprirá seu checklist. Tento cumprir o meu – faltam poucas ações. O próximo passo: assistir ao filme.

Imaginei que seria num local tipo uma sala de cinema, mas está mais para um consultório médico. Não há mesas, ou outros móveis além da cadeira única. Não há bancadas, armários ou tapetes. Não há pipoca. Nada. Tudo asséptico e impecável em um tom sóbrio de cinza. Uma cadeira e uma tela que cobre toda a parede em minha frente.

Para interagir, apenas um único botão que liga o comando de voz: posso parar, adiantar, retroceder e pedir explicações, diz a operadora com voz grave, parecida com aquela que dá avisos em aeroportos.

Procuro me acomodar da melhor maneira possível. Não houve um único momento nos últimos cinco anos (desde quando passei a usar o relógio e paguei pelo direito de ver o filme) que não tenha me preparado para este momento. Tento ser forte, convencendo-me de que tendo minha vida sido coroada de sucessos profissionais (sou um milionário – sou vitorioso) e familiares (filhos criados com tudo o que o dinheiro pode pagar) – o filme somente pode ser uma ode à minha existência, o proselitismo de uma vida abençoada.

A cadeira única é confortável. Não há testemunhas, não há bajuladores. Há apenas o confronto final da experiência com a realidade, ou da experiência com a experiência. Aquilo que vivi à luz de minhas memórias e a dos outros; o resultado final de toda a minha caminhada. Dizem que a vida pode ser um jogo do tipo ganha-ganha: eu feliz, fazendo outros felizes. Eu achava isto até ver o filme - preferia não ter visto.

A experiência de se fazer um filme baseado em memórias subjetivas de uma pessoa, junto com aquelas memórias das pessoas mais próximas com as quais o moribundo conviveu, foi, sem falsa modéstia, uma ideia minha.

Sempre achei que vidas vitoriosas – como a minha – deveriam ser levadas à posteridade. Seres humanos plenos de sucesso deveriam ter a oportunidade de imortalizar suas grandes conquistas por meio de um filme – o filme mais real que poderia ser feito (filmes que poderiam servir de lição para que outras pessoas aprendessem com nossas realizações e acertos).

Porém, uma lição que não aprendi é que expectativas certeiras de grandes vitórias, na maioria das vezes, são prenúncios de soberbas tristezas e como não poderia ser de outra forma – enormes derrotas.

O filme começou. Para quem nunca viu um filme de sua vida estrelado por você mesmo, posso dizer que era como ver uma fita de vídeo de um aniversário ou de uma viagem, porém sentado em uma cadeira pensa e bamba (confiança na alegria do que está vendo, medo da incerteza no tombo que algo me dizia que poderia vir).

 Eventos simples ganham enorme dimensão pelas circunstâncias do momento. Minha infância, meus saudosos pais e irmãos, o filme reconstruído de como edifiquei as bases de minha vida de sucesso traz um sentimento de gratidão a mim mesmo por ter acertado tanto.

Mesmo perto do fim eu não perdia o cacoete de vislumbrar utilidade em minhas realizações. Tinha certeza de que a história de minha criancice inspiraria muitos jovens e adolescentes. Um filme inspirador - chego a deixar escapar um sorriso (o primeiro de há muito tempo). Tudo ia muito bem: quanto mais crescia no filme, mais eu sorria, mais valia à pena. Nada mais sublime do que um sentimento de legado, para aplacar a dor da partida.

Mas, de repente, como se houvesse um roteirista capcioso ou um diretor querendo enganar o telespectador, a trama mudou. (Mais tarde, no último momento, eu perguntaria: - como eu não entendi a mudança?)

Percebi pelas feições das pessoas do filme, que o mocinho super-herói, humanizava-se e desumanizava-se em bandido. Parece que o filme havia trocado de diretor, e tudo que era idealizado, ruía ruína abaixo. O meu relacionamento com minha esposa, a criação de meus filhos, a escolha de suas profissões, a compra da empresa de tecnologia, todas as histórias eram contadas de uma forma sarcástica e mentirosa.

Como mostrar minha saudosa companheira apenas triste e chorando pelos cantos? Como ter um close de meu filho me amaldiçoando como pai? Meu ex-sócio dizendo no leito de morte que morreu por minha causa?

Como mostrar colaboradores divididos em duas possibilidades: os que me odeiam e os que têm pena de mim? Como aceitar meus assessores mais próximos e mais queridos olhando-me com piedade? Eu, que do alto do morro decido a vida das pessoas? Como alguém ousa ter pena de mim? Não admito! Não aceito!

Ligo o botão da operadora. Grito. Digo que está tudo errado. -- É tudo mentira!  --É tudo falsidade! -- O algoritmo está errado! A operadora parecendo que já sabia o que ia acontecer, pois já havia acontecido em testes outros; calmamente, entre meus xingamentos e palavrões, diz, com voz mansa e calma, que normalmente na transição entre a infância e a vida adulta há uma mudança de enredo no filme. Explica que para a primeira parte, normalmente somente se dispõe das memórias do interessado, e quando há parentes próximos, pais e irmãos, as lembranças são normalmente idealizadas.

E que para o decorrer do filme, são juntadas memórias mais críticas e recentes; juntam-se as memórias de filhos, esposas, amigos, colaboradores... E o programa capta as memórias subjetivas de cada um. O que cada um viu da vida, etc etc etc. Com seus sentimentos VERDADEIROS, etc, etc, etc. (Parece que pensava: - Triste aquele que não enxerga além das verdades sociais, ou da verdade do egoísmo...)

Não escutava mais a voz da operadora, escutava apenas a voz do meu ex-sócio no exato trecho do filme em que ele dizia: - ele ainda há de sofrer o que eu estou sofrendo nestes últimos momentos... Ele ainda há de sofrer... sofrer muito...

Não há mais o que dizer, nada mais há a relatar. Para mim o filme acabou.

Não sei se foi porque não quero mais ver outros absurdos e falsidades, ou porque o relógio começou a apitar antes da hora; ou porque a imagem de repente desapareceu. Ou simplesmente se foi porque geralmente não se consegue perceber o exato momento em que se perde a conexão com o filme da vida que passa inexoravelmente, a todo momento, pela tela branca de nossos olhos....

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