Artigo: as lições da saúde para a educação e nossa obrigação coletiva com os sonhos dos alunos das escolas públicas

05/08/2020 20:42

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: as lições da saúde para a educação e nossa obrigação coletiva com os sonhos dos alunos das escolas públicas

Uma vez, em uma aula sobre controle da administração pública, eu indaguei à turma qual seria a imagem que melhor representaria o ato de controlar. Um aluno sugeriu a imagem de um policial, em uma blitz veicular, pedindo documentos aos motoristas. (Vários alunos assentiram com esta visualização). Outra aluna sugeriu uma imagem de uma mãe (ou um pai) puxando a orelha do filho (certamente porque o mesmo fez algo que não devia, ou porque não estudou o suficiente). Um aluno, bem gaiato, sugeriu a ideia de um namorado (ou namorada) com ciúmes pedindo explicação ao consorte sobre o porquê de ter chegado àquela hora. Outro ainda sugeriu um detetive, estilo Sherlock Holmes, com uma lupa, certamente partindo da premissa de que para controlar se deve descobrir o que se fez de errado e o que se quer esconder.

Achei muito interessante este exercício de visualização; até porque, quando visualizamos algo durante uma explicação, são conectados circuitos cerebrais que facilitam a memorização. E o melhor foi a surpresa causada quando expliquei, qual seria a imagem, para mim, que melhor representaria este ato de controle. (A curiosidade e o espanto são ótimos gatilhos de aprendizagem).

Para mim, a melhor imagem do ato de controlar é daquele profissional do entretenimento (já vi deles, por exemplo, em vários programas de calouros na televisão) que controla e equilibra pratinhos girando em cima de arames de metal. E que, para manter todos os pratinhos girando ao mesmo tempo, ocasionalmente ele tem que dar um ligeiro impulso em cada um dos pratos para que eles permaneçam rodando. 

Parece fácil, mas não é. O impulso não pode ser tão pequeno que faça o prato girar pouco e logo caia, e não pode ser tão grande de forma que o prato voe do arame. E muitas vezes será dado impulso a um prato, mesmo que ele não esteja parando, mas simplesmente porque se tenha que preventivamente reforçar aquela rotação para que ela dure até que se garanta a rotação de todos os outros. (Se se fosse esperar até o último momento, não daria tempo de corrigir todos os demais. O planejamento também faz parte do controle).

 Mas por que eu escolhi esta imagem e não as outras? Exatamente porque controlar envolve sim fiscalizar, medir (como o policial, a mãe, a namorada, o detetive), mas também engloba comparar a medição com o padrão (como o policial, a mãe, a namorada, o detetive), e ainda (e aí está o pulo do gato), ações de correção de rumos para que o padrão de resultado esperado aconteça.

Então, porque não a mãe puxando a orelha do filho? Ela não está exortando a um resultado? Para que o menino trilhe o caminho da virtude? Sim, ela está aplicando uma sanção, ou um “incentivo” para que o menino não erre mais. Mas, em termos de controle, a sanção deve ser algo subsidiário, posterior. De regra, pelo menos em controle de gestão, é mais eficiente, primeiro, externar a demonstração do padrão, e ações proativas por parte do controlador para que o padrão efetivamente aconteça; utilizando-se, inclusive, se preciso for, de indicação ou sugestão de rumos. (Neste ponto, tem que haver um compromisso do controlador com a assunção do resultado, dando a mão, se necessário, ao controlado para que o objetivo realmente aconteça).

 Neste ponto, o controle de estudos, por exemplo, não fica completo se ele termina na nota baixa ou no castigo. Ele tem que avançar pela demonstração do caminho correto, pela exigência da aula de reforço, ou da carga extra de estudos, e por verificar, em um novo ciclo, se aquela deficiência foi superada. (Senão, um ciclo vicioso de deficiências de aprendizagem poderá, em bola de neve, prejudicar todo o aprendizado futuro).

E é por isso eu prefiro os pratinhos, pois uma vez eles girando, o artista, que faz o controle, mede com o olhar aqueles que estão girando de forma mais lenta, e dá o impulso correto necessário para que o prato gire pelo tempo suficiente a que se corrija a eventual rotação dos outros, fazendo com que todo o sistema permaneça em rotação. 

Ele mede, compara com o padrão, intervém, corrige; e sua intervenção garante que o sistema funcione. (E este é o segredo do controle, ele tem que interferir o mínimo necessário para que o sistema obtenha seu sucesso. Sendo que, no caso das intervenções exclusivamente por sanção, estas normalmente não conseguem, por si sós, corrigir os erros de rumos, gerando, mais das vezes, exclusivamente sentimento de vingança, medo e paralisia, e não o resultado, que era o que devia aparecer).

Muito bem, desenvolvido este primeiro argumento, o que isto tem relação com a gestão nas áreas de saúde e educação? E sobre o que a saúde tem a ensinar à educação? Ora, qualquer sistema de gestão tem que incluir uma etapa de monitoramento e controle. Simplesmente porque a gestão (de qualquer atividade humana) se desenvolve por meio das etapas de planejamento, organização/direção/execução, medição e correção. Sendo medição e correção, as etapas concernentes ao controle. Devendo todas estas etapas estarem estritamente vinculadas à assunção de resultados. (Todas as ações, desde o planejamento até a correção, e reiniciando o ciclo, são para que os resultados aconteçam).

Neste ponto, o que se quer argumentar de agora por diante, é que a área de saúde, notadamente no setor púbico, utiliza muito mais mecanismos de gestão e é muito mais estruturada para a produção de resultados, do que a área de educação. Mas por que isto aconteceria? Tenho dois palpites.

O primeiro é de que como a área de saúde lida com questões graves, urgentes e imediatas, como dor, sofrimento e morte; e seus resultados, quando ruins, são muito mais percebidos, gerando tristeza e indagações do porquê de o mau evento ter acontecido. O que demanda sindicar-se todas as etapas do tratamento, desde a estrutura oferecida, como a atuação dos profissionais em si. Uma morte evitável é notícia na imprensa, e é repudiada por todos. Diferentemente do caso da educação, onde, infelizmente, a falta de aprendizado, a evasão escolar, a repetência, mesmo em larga escala, não geram tanto repúdio social, a ponto de serem exigidos com veemência melhores resultados.

O segundo palpite e que de certa forma explica o primeiro, é que a neurociência comprova que nosso cérebro tem muita dificuldade em projetar o futuro, em analisar causalidades remotas. Neste prisma, como a tragédia educacional não se perfaz de imediato - ela se acumula ao longo dos anos, não formando jovens e adolescentes, e cerceando seus futuros-; então não se percebe a gravidade do mal causado e não se luta contra o mesmo. (Raciocínio semelhante vale para o sedentarismo, para a destruição ambiental, para o consumo excessivo de açúcares. Em todos os casos, o mal se perfaz lentamente e quando aparece, já é de grandes proporções e não tem como ser facilmente corrigido.) 

O fato é que, infelizmente, ainda se imagina que a boa educação se processará automaticamente, desde que o aluno esteja matriculado na escola. Não. É óbvio que o aluno tem que estar matriculado (e se não estiver, tem que se tomar providências para que esteja). Mas, além disso, são necessárias diversas providências para que a aprendizagem efetivamente aconteça. E aí que entra a gestão, e as lições que a gestão da saúde tem para dar à educação. Vejamos algumas.

Em primeiro lugar, em medicina e saúde, existem medidas proativas de localização de doentes. E uma vez estes localizados, eles são tratados. De uma maneira geral, apesar das deficiências de dificuldades, uma vez ingressando um paciente em uma unidade de saúde, não se espera que o doente fique bom por si só. Algum tratamento é prescrito, e este tratamento é acompanhado e monitorado. Se isto não acontece, há reclamação e revolta, e tomada de providências.

 Transferindo o caso para a educação, não se pode admitir crianças e adolescentes fora da escola. Se houver, tem que haver a chamada busca ativa para trazê-los ao sistema educacional. Do mesmo modo, não se pode querer que automaticamente os alunos aprendam os conteúdos, sem algum tipo de monitoramento ou intervenção. Não. Tem que ser acompanhado o processo de aprendizagem para ver, do mesmo modo de que se afere se o paciente está evoluindo, se o aluno está aprendendo. Por isso a importância do monitoramento das avaliações periódicas, para identificar desde logo uma deficiência de aprendizagem e corrigi-la.

Em segundo lugar, na medicina e na saúde, os tratamentos têm que ser eficazes, no sentido de que não se deve autorizar um curso de tratamento que se sabe que não dará resultados em detrimento daquele que resolve. E mais do que isso, os tratamentos são disciplinados em termos de protocolos gerais, mas que são ajustados às necessidades e peculiaridades de cada paciente (alguma comorbidade, alguma alergia, etc).

Trazendo para a educação, já há uma série de consensos científicos acerca de práticas e metodologias que resultam em aprendizagem proveitosa, em termos de apresentação das aulas, material didático e planejamento pedagógico. Desta forma, seria lícito continuar utilizando práticas outras, que a experiência demonstra que não dão resultados? Claro que não. Do mesmo modo, a prática pedagógica apesar de geral, tem que ser individualizada, na medida do possível, para as necessidades e carências de cada aluno. Cada ser humano é único e tem facilidades e deficiências específicas, que têm de ser trabalhadas para que o sucesso pedagógico aconteça.

Por fim, todo tratamento médico não pode ser modificado de uma hora para outra, sem reflexão e sem se atentar para as consequências. Não. Quando alterado o curso do tratamento tem que se ponderar acerca dos prós e contras da mudança de rumo; e mais do que isso, é necessário ter absoluta noção de tudo o que foi feito até então (os exames efetivados, os remédios ministrados, etc). Daí a necessidade de registrar todo o histórico do paciente nos respectivos prontuários.

Em relação à educação, o raciocínio tem que ser o mesmo. Não se pode mudar o planejamento pedagógico de uma hora para outra, sem razão e sem reflexão. Notadamente quando uma gestão despreza tudo o que vinha sendo feito até então. Neste prisma, duas palavras são relevantes: continuidade, no que pertine às boas práticas (a educação é um processo de longo prazo, que envolverá obrigatoriamente diversas administrações, onde cada uma dará sua contribuição ao sucesso da formação do aluno); e a segunda palavra, memória. Não a memória neurológica, mas sim a memória do registro histórico de todas as atividades desenvolvidas pela gestão educacional, para que na sucessão de gestões, se saiba o que foi feito até a transição, para que o processo tenha seguimento (e isto é mais importante ainda na eventual sucessão municipal que ocorrerá em 2020, já que este é um ano atípico em que será necessário uma gestão repassar a outra, em detalhes, tudo o que ocorreu neste exercício, notadamente em termos dos conteúdos perdidos na quarentena).

E por que tudo isso é importante? Por que é através da boa gestão, do monitoramento do aprendizado, da mitigação das deficiências, enfim, das técnicas de gestão acima mencionadas, é que se garantirá um modelo de educação de qualidade a todos os alunos, notadamente os das escolas públicas. Sim, mas por que isso é importante? Por diversas razões: a) jurídicas (educação é direito de todos e dever do Estado); b) econômicas (uma economia eficiente somente exsurge em uma base de mão-de-obra qualificada pela educação); c) de justiça social (nada mais injusto do que cercear o maior fator de redução de desigualdade que é a educação). 

Mas, para mim, basta a razão ética, representada em nosso dever coletivo e humanitário de garantir a possibilidade de todos os jovens sonharem, pois é através do sonho que é incentivado o desenvolvimento daquilo que é intrinsecamente humano: a autodeterminação do indivíduo e a escolha do seu caminho entre todas as condições de possibilidade de realização pessoal. Ou seja, todos os jovens, incluídos os alunos das escolas públicas, têm o direito e devem ter possibilidade de direcionar seus sonhos por qualquer caminho lícito. E esta oportunidade não pode cerceada, seja pela impossibilidade de acesso às escolas; seja pela concorrência injusta face à deficiência no aprendizado; seja, pelo que é pior, pela simples cassação do sonho, pelo empurrão irrefreável em um ciclo de reprodução de desigualdades, que é o que lamentavelmente vivemos nos dias de hoje.

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