Artigo: Voto não tem volta. Pelo voto, escrevemos nossa história.

11/11/2020 17:59

Por João Augusto Bandeira de Mello


Artigo: Voto não tem volta. Pelo voto, escrevemos nossa história.

O querido leitor já prestou atenção no fato de que, em frente a um espelho, não conseguimos ver nossos olhos se movendo? Outra pessoa verá os olhos se movimentando. Se você gravar a cena, o vídeo captará o movimento; mas ver mesmo, os olhos se movendo, você não verá. 

Mas o que isso tem de importante? Realmente, por si só, nada. Mas serve para ilustrar uma amostra de fenômenos que acontecem no dia-a-dia, e que, por não serem percebidos, não são registrados, e, não sendo registrados, não entram no nosso arcabouço de vivências e experiências que compõem nossa historicidade, nossa consciência crítica para fazer escolhas e tomar decisões. (E que podem nos levar a erros de julgamento).

Quantas vezes, em nossa rotina diária, não percebemos que pessoas próximas estão passando por dificuldades ou em sofrimento (já que não somos capazes de enxergar nas entrelinhas, ou além da resposta, tudo bem)? Ou que áreas ambientais próximas a nós estão degradando (cada dia, um pouquinho e ao longo de anos a destruição)? Ou que determinado governante, aparentemente tão sério e altruísta, na realidade está envolvido em atividades de corrupção? (Na medida em que, de regra, somente conhecemos o que a mídia mostra, e não vivenciamos as entranhas do cotidiano do atuar político).

Temos percepção limitada por natureza. De regra somente apreendemos e compreendemos, aquilo que passa por nossa atenção. Como ainda, temos muita dificuldade em avaliar consequências futuras, e/ou circunstâncias que mudam com muito vagar (veja o problema ambiental citado), e/ou questões técnicas e estatísticas, ou eventos ligados à incerteza.  

Mas isso nos impede de decidir? De forma nenhuma. Mesmo se não entendemos bem determinado assunto, mesmo que não realizemos bem todas as relações de causalidade e consequências, tomamos decisões. Na pressão da vida, temos que tomar decisões mesmo sem estarmos tão bem preparados para tomá-las. 

E, neste contexto, quando não sabemos o caminho para a resposta exata, utilizamos atalhos mentais para, por aproximação e/ou correlação, chegarmos a uma solução aproximada para o problema da escolha. Sendo certo que mesmo estas escolhas aproximadas, ainda estão submetidas a vieses, pensamentos tendenciosos que podem nos afastar ainda mais da solução mais otimizada. Vejamos exemplos.

Se eu, digamos, em uma viagem, quiser escolher um dentre vários restaurantes que não conheço, e não tenho uma dica pertinente; acabo por escolher aquele que tem mais pessoas, ou aquele que tem a decoração mais bonita. Tudo isto imaginando que o restaurante mais bem frequentado, ou mais bem cuidado, terá comida mais gostosa. (O que pode dar certo, ou não, porque o restaurante pode ser bem decorado e ter comida péssima; e estar cheio por uma festa ou outro motivo, e não pela qualidade do sabor de seus pratos). 

De outro modo, numa rua conhecida com vários restaurantes, após algumas tentativas e erros, normalmente elegemos um para curtirmos rotineiramente nosso almoço de domingo. E, uma vez estabelecida a escolha, daí o visitaremos sempre: sentando na mesma mesa, conversando com o mesmo garçom e pedindo os mesmos pratos, saboreando a enorme alegria de não ter o trabalho de pensar, escolher, e sofrer com uma escolha negativa, mesmo que o restaurante do lado faça uma alguma promoção. (É a barreira da opção default, que vale para o restaurante do almoço familiar, para o encontro dos amigos sempre no mesmo bar, e para os planos e assinaturas que não utilizamos e que temos preguiça de cancelar.)

Em relação ao voto, ou às eleições, isto não é diferente. A decisão sobre quem vamos eleger, mais das vezes, não passa por uma relação de estrita racionalidade, e pode ser não tendente à busca do interesse público, ou do bem comum. Tudo porque somos humanos, com vieses de comodidade, medo de mudanças, aversão a perdas, instinto de autoproteção, entre outros. Por isso, temos tendência de decidir com base em interesses individuais; e mesmo quando buscamos uma solução de interesse coletivo, em muitas situações, de ordinário, por não conhecermos a fundo os candidatos e seus perfis, baseamos nossas opções em critérios subjetivos e emocionais, e somos tão bem manipulados pelos marqueteiros eleitorais.

Analisemos estas questões, a começar, pela manipulação do marketing. Ora, o trabalho do marketing é fazer com que decidamos escolher o candidato apresentado para ser o destinatário de nosso voto. Neste prisma, primeiro, as propagandas têm que chamar nossa atenção para aquele candidato, para que ouçamos suas propostas, e para que nos sintamos bem com a perspectiva de votarmos nele. (Utilizando nossos atalhos mentais e nossos juízos prévios).

 Por isso os belos programas eleitorais, carregados de emoção, que, a um só passo, despertam nossa atenção (e sem atenção nunca haverá voto, pois o candidato será mais um entre tantos outros, o que explica a vantagem dos candidatos já famosos e/ou experientes); e abrem a possibilidade de escutarmos as suas ideias e programa de governo. (Sendo que já é provado cientificamente que uma emoção positiva em relação a uma pessoa, auxilia no convencimento de um argumento externado por ela). 

Daí o porquê da música (toda campanha eleitoral tem seu jingle), pois a música tem uma ligação forte com a criação de memórias, e também com a fixação da mensagem. E isto esclarece também porque não há gente triste no entorno de um candidato (há sempre clima de festa), pois tem que se criar a mensagem subliminar de que o simples estar com determinado candidato, trará felicidade no futuro (e votamos, mesmo que inconscientemente, naquele candidato, buscando essa alegria. É a mesma mensagem implícita nas propagandas de cerveja, de automóveis ou dos antigos comerciais de cigarro).

A neurociência também explica os discursos olho-no-olho, os sorrisos, a emoção criando empatia, pois é importante criar uma conexão entre candidato e eleitor. Candidato sem conexão, não tem sua mensagem ouvida e dificilmente terá voto. (Este é outro atalho mental. Voto no candidato que se conecta a mim no guia eleitoral. Sendo certo, por outro lado, que isto pouco significa em termos de realidade, já que tudo pode ser muito bonito no vídeo, mas pode condizer muito pouco com o que acontecerá no pós-eleição – quem nunca ouviu falar de candidato que só visita o eleitor de quatro em quatro anos?)

O funcionamento do cérebro também explica as promessas de campanha, que são majoritariamente não cumpridas, mas que servem como um argumento eleitoral quase que obrigatório. (Parece até um leilão: - quem promete mais?) Tudo porque a nossa mente é ruim tanto em recordar os fatos do passado (as promessas são esquecidas tanto por eleitores, quanto por candidatos); como sofremos de um viés de otimismo em relação ao futuro, achando ingenuamente que o que foi desenhado e prometido vai efetivamente se realizar na totalidade. (E, lamentavelmente, inúmeras vezes, as promessas são inexequíveis e não ultrapassam uma mínima análise de compatibilidade orçamentária e financeira).

 Do mesmo modo, nosso cérebro tem uma preferência por legitimar o status quo, rechaçando as perspectivas de mudança. Neste prisma, são muito úteis para o sucesso, os discursos de medo, e as ameaças nem sempre reais ao modus vivendi atual. Isto porque, de uma maneira geral, como o nosso sistema nervoso não gosta de gastar energia - ele não gosta de “novidade”; então, na falta de uma reflexão mais apurada, tendemos a manter a opção default descrita acima, e votar em candidatos já conhecidos e/ou em reeleição e/ou que já votamos, e/ou que representem uma continuidade. (Lembra do restaurante?)

Quanto a incutir o medo, isto serve para encobrir todas as outras eventuais discussões, já que o medo é paralisante e ele faz concentrar energias para que, com exclusividade, se possa fugir da situação de perigo. Neste prisma, uma suposta ameaça contra os costumes, contra o modo econômico, ou contra a moral dominante servirá para monopolizar o discurso nesta área, e encobrir qualquer outro aspecto, pessoal, social ou administrativo. (Aspectos que, na maioria das vezes, são muito mais concretos e relevantes do que as supostas ameaças lançadas).

Fato que tem muito relevo em termos de Fake News, pois, se não temos conhecimento a fundo sobre determinado candidato, e a informação que nos chega vem com aparência de verdade (divulgadores de informações falsas utilizam plataformas que imitam informações de cunho jornalístico); introjetamos esta pós-verdade e nosso juízo fica inapelavelmente comprometido e prejudicado. (Lamentavelmente o critério de verdade baseado no é certo, pois deu no zap, ainda é muito difundido).

Mas, sejamos justos, os problemas eleitorais não vêm somente de eventuais maquiagens de marketing, de discursos fantasiosos, ou de notícias falsas. Grande parte dos problemas eleitorais vêm de erros de avaliação que são próprios do eleitor, notadamente na errônea percepção de que, em uma eleição, a perspectiva de ganho pessoal pode sempre superar uma visão de ganho coletivo.

E daí a utilização, como critério de voto, da maximização da utilidade individual (o que eu ganho com isso?), na hora de escolher os candidatos. Nesta perspectiva, vota-se no amigo, vota-se em quem defende a categoria profissional, vota-se em quem promete um emprego, vota-se em que lhe dá material de construção, vota-se em troca de uma cesta básica, e isto sucessivamente, até chegar no caso limite e mais grave de todos: vota-se, em troca de dinheiro, vendendo-se lamentavelmente o voto.

Mas eis que surgem duas perguntas: - primeira, qual é o grande problema de alguém vender o voto? Isto não faria parte da liberdade de pensamento e de opinião, e da própria autodeterminação? E a segunda pergunta: - O que isto tem a ver com nossas percepções? Perguntas postas, vamos tentar respondê-las.

Quanto à problemática da venda do voto, o problema é óbvio: a corrupção. E aí não estamos falando apenas dos tipos penais, e das proibições legais. Estamos falando da raiz da palavra corrupção, que significa, deterioração, desagregação, estrago, prejuízo, caminho para a destruição. Mas por que isso? Exatamente porque a escolha de lideranças em um sistema democrático tem um quê de sagrado, na medida em que a essência da escolha é o mérito, um mérito que congregue virtude e altruísmo.

Mérito/virtude porque o sistema é pensado sempre para que sejam feitas as melhores escolhas, em que as opções sejam eficientes e as decisões administrativas efetivas. E se a gestão tem que ser ótima, evidentemente tem que ser escolhido o melhor candidato. O melhor em termos de serviço público, o que envolve não só a capacidade de gestão e liderança, mas também legitimidade e confiança. (Entregamos a nossos representantes, junto com o poder político, parcelas de nosso patrimônio e, no limite, parcelas de nosso modo de vida. E evidentemente isto não pode ser legado a qualquer um.)  E mérito/altruísmo, simplesmente porque o agir administrativo sempre é desenvolvido em prol de outrem. E somente quem pensa primordialmente no outro, pode exercer tão nobre mister.

E corrompendo estas escolhas, tudo passa a ser possível: líderes sem mérito, sem virtude, sem altruísmo. Líderes que não pensam em prestar contas, na medida em que “compraram a sua posição”. E eleitores egoístas que se ensimesmam nos seus problemas e não pensam em fortalecer o tecido social. Ou seja, corrupção, deterioração e destruição daquilo que chamamos de sociedade. (É certo que há eleitores em que a pressão da sobrevivência, lhes retira a possibilidade de escolha. Não é deles que estamos falando).

E o que isto tem relação com o cérebro e nossa psicologia comportamental? O mesmo que foi discutido anteriormente: a) somos naturalmente tendentes a pensar individualmente e não de modo coletivo (pensamento coletivo é uma conquista cultural e tem que ser semeado diuturnamente para que a farinha pouca meu pirão primeiro não prevaleça; b) somos obcecados com o aqui agora, e, neste ponto, muitas vezes apenas se percebe o ganho individual, a vantagem ou dinheiro com a venda do voto, e não se realiza o incentivo negativo que dele decorre, em termos de maus governantes, maus serviços públicos e negação de direitos fundamentais àqueles que mais precisam; c) não percepção de que o futuro se constrói a partir do presente, e que das más decisões do hoje, decorrerá o futuro tenebroso do amanhã.

E o que fazer? Uma resposta segura é ter consciência de que o exercício do voto não é algo simples trivial, e de menor importância. E de que é talvez o mais importante papel que cada cidadão tem na vida em sociedade. Por isso, tem que ser exercido com reflexão e seriedade.

Aliás, se estamos falando em comportamento humano, uma das melhores maneiras de condicionar virtude é exatamente a pressão social. Neste ponto, temos que não apenas votar com critério, sem cair nas armadilhas de marketing ou de fake-news; e buscar o interesse coletivo em vez do individual. Temos que repudiar veementemente o processo de compra e venda de votos, ou sua troca por qualquer coisa, sem a mínima avaliação do mérito do candidato. É um dever coletivo, é um dever social, é um dever que temos em relação a todos que precisam de serviços públicos. É um dever inescusável relativo ao nosso futuro.

Neste sentido, finalizo transcrevendo uma poesia que escrevi para outra eleição, mas que serve para todos os pleitos, de todos os tempos, inclusive o de agora. E que diz algo óbvio: que voto não tem volta, e que pelo voto, escrevemos a nossa história. 

 

“Retire o som da música, ignore as imagens que encantam, 

 Abstraia o sorriso rigorosamente calculado. (E a alegria dos que pulam, somente porque foram financiados...) 

Esqueça o falso currículo apresentado,
Aquele que somente traz o verso alegre da medalha que ninguém sabe exatamente quem foi que deu.

Olvide o arco-íris que parece existir somente porque dizem estar lá.

Isole-se das ondas de pensamento único,
Do tem que ser assim,
Do somente eu tenho a verdade.

Reflita sobre o que é certo.
Mais do que isso, reflita sobre o que é moralmente certo. (O futuro escrito na trilha escura de egoísmo certamente será dolorosamente sombrio)

Avance refletindo, procurando ver até onde leva o fio da meada dos apoios, dos financiamentos, das ideias e dos projetos.(Lembre-se que o hoje tempestuoso começou em um ensolarado e inofensivo anteontem).

E vote.

Vote com toda a responsabilidade,

Vote com todo o peso de quem sabe que o voto não tem volta,

E mais do que tudo,
Vote tendo em mente que o voto é uma das principais canetas com que se escreve a história.

(E nesta história, que é escrita por todos nós, você pode livremente escolher entre ser herói, vilão ou simplesmente vítima). ”

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