Crônica: um siri em necrópsia

27/09/2021 21:10

Por: Archimedes Marques


Crônica: um siri em necrópsia

Cafarnaum era um funcionário público exemplar, um excelente profissional, um dedicado e exclusivo, jamais igualado Agente Auxiliar de Necropsia que trabalhava no Instituto Médico Legal de Aracaju. Trabalhava já então por sua livre e espontânea vontade, vez que as duas possibilidades de aposentadoria haviam alcançado o seu período laborativo, tanto pelo tempo de serviço extrapolado, quanto pela idade avançada. Servidor que podia ir embora descansar na sua cadeira de balanço seus últimos dias, mas não havia quem colocasse isso na sua cabeça. Para expulsá-lo do IML só se fosse à força, e bote força nisso. E assim, Cafarnaum se transformou em um patrimônio da casa, um patrimônio vivo e exemplar do IML, uma figura lendária em todos os sentidos.

O IML não era somente o seu trabalho, era a sua casa, seu lar, sua vida. Para Cafarnaum a sua simples e difícil função era a melhor de todas as outras existentes. Cortar cadáveres, serrar cabeças, procurar projeteis ou objetos em suas vísceras, mexer em corpos putrefatos, buscar mortos mutilados em acidentes, ver sangue, sentir sangue, sentir o cheiro forte do formol, inalar a essência do morto e da morte era para o bom velho Cafarnaum uma satisfação incomum que ele realizava sem luvas, sem máscaras ou qualquer tipo de proteção possível.

Praticamente Cafarnaum trabalhava todos os dias em todos os plantões pois aceitava qualquer coisa em troca, por vezes até algumas doses de cachaça, para cobrir o expediente dos seus colegas que precisassem faltar. Era pau para toda obra em todo e qualquer lugar que fosse solicitado os seus préstimos.

Era fato sabido e corrido entre todos os funcionários que o Cafarnaum fazia as suas refeições no seu próprio local de trabalho. Almoçava, lanchava ou jantava na mesma sala em que os mortos estavam sendo necropsiados, submetidos aos exames cadavéricos devidos. Também guardava a sua marmita trazida de casa, a sua garrafa de água ou qualquer outro alimento aos pés dos defuntos nas geladeiras que os conservava até as suas devidas liberações finais.

Ali vizinho ao IML era localizada a Delegacia Central de Aracaju, uma unidade policial em que também funcionava os plantões noturnos, dos finais de semana e feriados. E ali estava eu como Delegado na gerencia dessa delegacia, cuja boa vizinhança melhor me apeguei ao velho Cafarnaum, mais pela sua simples filosofia de vida, apesar das nossas extremas diferenças em atos e atitudes, gostos e tudo mais.

Calouro na Polícia e metido a ser o melhor de todos, não diferente dos jovens policiais que se acham superiores aos antigos, aos mais experientes, então nas minhas horas vagas ou de menor movimento na delegacia, não só pela curiosidade, mas principalmente para me acostumar com a situação fúnebre e horrorosa que tanto me causava náuseas e que eu achava ser condizente com a minha carreira, então passei a visitar a sala de necropsia do Instituto Médico Legal para assistir ao trabalho efetuado pelos Médicos Legistas, quase sempre com o auxílio de Cafarnaum, que para dizer a verdade era quem fazia todo o trabalho pesado de cortar, serrar, abrir, retirar o cérebro ou as vísceras dos examinados em busca das evidencias das suas mortes para os devidos laudos técnicos.

Certo dia caí na besteira de entrar na sala quando da chegada de um defunto afogado que fora achado na praia de Atalaia em avançado estado de decomposição e putrefação, já bastante mutilado e até largando aos pedaços. Era o meu desafio maior, meu teste de fogo, para me acostumar de vez com a situação devido as tantas outras diferentes anteriormente a que me submeti voluntariamente assistindo a exames de todos os tipos de mortes violentas possíveis.

Ali mesmo constatei em meio a uma fedentina insuportável, a pele podre das pernas e braços do defunto ficar grudada nas mãos nuas do Cafarnaum, quando da sua colocação à mesa de exame, mas o pior estava por vir. Não demorou muito e caiu da mesa no chão da sala um grande siri, um siri que a gente aqui em Sergipe chama de siri patola.

O siri que veio dentro da barriga do inchado e deteriorado cadáver afogado, agora estava ali no chão sujo da sala, em líquido gosmento róseo-avermelhado, desorientado e armado com as suas duas puãs tais quais tesouras apontadas para o alto no sentido de se defender de um possível ataque e, para minha surpresa escuto o velho Cafarnaum dizer:

– Chegou o meu tira-gosto!…

Saí rápido da sala para vomitar lá fora e voltar para a Delegacia acreditando ser brincadeira aquela frase do amigo Cafarnaum.

Momento depois me chega o velho Cafarnaum já com o siri cozinhado, todo vermelhinho e, cantando vantagem:

– E aí doutor, vai encarar junto comigo?… Ou pelo menos me paga uma dose de pinga e uma cerveja?

– Você está ficando doido Cafarnaum… Jogue essa porcaria fora!… Onde já se viu querer comer um siri que estava dentro da barriga de um defunto e ainda mais, podre e nojento, uma verdadeira carniça?…

– E qual é a diferença de se comer este ou de comer qualquer outro siri, meu querido doutor?… Será que o outro que o senhor pesca ou compra na feira, também não comeu defunto?…

– Vamos ponderar um pouco Cafarnaum… Isso que você quer fazer, além de absurdo, anti-higiênico e nojento é deprimente, eu pago outro tira-gosto qualquer para você, mas jogue esse siri no lixo.

– Anti-higiênico não é, porque quando se cozinha, mata-se todos os micróbios. Nojento é aquilo que o senhor come sem saber de onde veio. Deprimente é o senhor comer algo pensando que é bom, quando na verdade está sendo enganado, está comendo algo ruim, que não vale nada, que pode lhe fazer mal… Será que quando o senhor compra no mercado ou no açougue a carne mais cara que existe, o filé, esse filé não veio de uma vaca que morreu de uma doença braba ou de uma picada de cobra… E aí?… Eu não quero que o senhor me pague nenhum outro tira-gosto não doutor pois já tenho o meu… Só quero que me pague o acompanhamento que é para eu comer o meu siri…

– Se é isso mesmo que você quer Cafarnaum, então seja feita a sua vontade… Pode ir andando que chego já para satisfazer o seu pedido…

E ainda meio incrédulo, cerca de vinte minutos depois fui até o barzinho da esquina e lá chegando constatei os cascos e restos do siri dentro de um prato em cima da mesa, e Cafarnaum sentado ao lado se gabando:

– Só estava esperando o senhor para me pagar também a saideira, doutor… O siri estava gordinho, gordinho, uma verdadeira beleza, gostoso que só bicho de dicurí...

Daquele dia em diante não mais comi um siri sequer e toda vez que eu vejo um, me lembro do meu amigo Cafarnaum, uma pessoa simples, leal, verdadeira e trabalhadora que viveu um mundo estranho dentro desse estranho mundo com o entendimento e gosto peculiar que era só seu.

O velho Cafarnaum morreu alguns anos depois dentro do seu próprio local de trabalho. Dormiu e não mais acordou em um colchão no chão da sua sala de necropsia… Morreu no seu paraíso, na morte que pediu a Deus… Morreu tão pobre quanto nasceu, mas me deixou uma lição: Vivemos em um mundo em que cada um vive o seu mundo, apenas nos adequamos às regras e ao mundo dos outros.

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