Artigo: Arrecadação Tributária, um salto de qualidade para a gestão pública - Por João Augusto Bandeira de Mello

21/08/2023 09:12


Artigo: Arrecadação Tributária, um salto de qualidade para a gestão pública - Por João Augusto Bandeira de Mello

Adoro os filmes de Indiana Jones. Gostei muito do último, mas sou particularmente fã do terceiro: Indiana Jones e a Última Cruzada, onde o dueto de Harrisson Ford e Sean Connery é sensacional (Henry Jones e Henry Jones Jr – Indiana é apelido, com base no nome do cachorro...) E, no bojo das mil aventuras de busca do Santo Graal (o Graal seria o cálice usado por Jesus Cristo em sua última ceia), a sequência final de localização da relíquia inestimável, para a mim é a mais marcante.

Primeiro, rapidamente, porque o filme mostra com muita propriedade que nenhuma busca vale por si só; ela tem que ter um objetivo de transcendência – algo maior que se sustente no tempo; sendo que, na maioria das vezes, o processo de busca é muito mais valioso do que a chegada em si. (Neste ponto, o diploma, é relevante, mas o aprendizado do curso é muito mais importante; a chegada no cume da montanha é bela, mas muito mais interessante é a lutar para chegar lá. Indiana sabia disso e lutou para que a chegada ao Graal não fosse uma vitória de um interesse meramente egoístico, havendo outros valores muito mais proeminentes a serem protegidos).

Segundo, e aí começamos a falar mais propriamente do tema deste artigo, porque a sequência do mapa de acesso ao Graal traz em si uma trilha de iluminação que servirá para acender o caminho do árido tema do incremento e efetivo esforço de arrecadação no âmbito dos Municípios (especialmente, para efeito deste artigo, no que se refere a um “salto” conforme veremos adiante). De toda sorte, antes de adentrar no thriller de emoção, acredito que cabe traçar um diagnóstico da problemática tributária, que será discutida no presente texto.

Ora, quem convive minimamente com finanças públicas no âmbito dos Municípios sergipanos (e este paradigma pode ser espraiado, mutatis mutandis, para o Brasil) sabe que, de regra, os Municípios, notadamente os mais pobres, não têm uma arrecadação tributária própria expressiva, dependendo primordialmente de receitas de transferências (Fundo de Participação dos Municípios, repartição de receitas do ICMS, entre outras). A arrecadação dos tributos de competência municipal como o IPTU, o ISS, e o ITBI, salvo exceções, geralmente é muito pequena.

Para corroborar este raciocínio, trazemos dados históricos de um estudo feito por nós em 2009, analisando várias facetas da receita tributária própria dos Municípios sergipanos. E, naquele estudo, pudemos elencar os seguintes achados como mais relevantes àquela época:

  1. apenas dez municípios sergipanos detinham, em 2009, receita tributária própria superior a 20% do seu FPM (e alguns Municípios com receita tributária própria inferior a 1% do FPM e Aracaju com o percentual de 90% do seu FPM);
  2. dez municípios com valor de receita tributária própria inferior a R$ 10,00 por habitante, quando Aracaju, por exemplo, atingia o patamar de R$ 256,00 por habitante;
  3. Diversos municípios com patamar desproporcional de arrecadação tributária em proporção do seu PIB (e este talvez tenha sido o dado mais relevante);

Muito bem, a pergunta óbvia que se faz é, se com o tempo decorrido, a situação melhorou em termos de governança tributária. Nosso sentimento é de que, apesar de alguma melhora, o quadro geral é muito preocupante. E baseamos nosso raciocínio tendo por base o Anuário Socioeconômico de Sergipe para o ano de 2021, elaborado pelo Departamento de Economia da Universidade Federal de Sergipe, onde, dentre outros dados relevantes, restou patente que cerca de 50% dos Municípios sergipanos detém participação inferior a cinco por cento de sua receita tributária própria, em relação a sua receita total.

Ou seja, a conclusão indiciária, baseada nos dados acima e na experiência, é a de que além de um nível muito baixo de atividade econômica em muitos municípios, há fundados indícios de que não se faça a arrecadação tributária daqueles contribuintes que tenham capacidade econômica de pagar. (Dados de nossa pesquisa anterior demonstraram, por exemplo, dezessete Municípios com receita de IPTU anual inferior a R$ 1.000,00).

Neste ponto, outra indagação óbvia surge: pode haver responsabilização de Prefeitos por não implementar uma arrecadação tributária efetiva em seus Municípios? A resposta é evidentemente afirmativa. Inicialmente por um dever legal, já que a própria Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece como requisito de responsabilidade na gestão fiscal, a previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos de sua competência constitucional, e assinalando como sanção, a vedação de transferência voluntárias aos Municípios que descumprirem o normativo no caso de impostos. (O que faz muito sentido, pois se o ente não arrecada seus recursos próprios derivados de impostos, por que enviar recursos incentivando a quem não faz seu dever de casa?)

E, segundo, que tem a ver com o primeiro, pois este é um dever de boa gestão. Como veremos daqui a pouco, é um dever para com o futuro do Município e de sua sociedade. Neste sentido, em sendo constatado potencial arrecadatório, e o gestor Municipal, de forma isolada ou em conjunto com a Câmara, resolve, de forma desarrazoada e contra as evidências de gestão (e de potencial arrecadatório), simplesmente resolve não arrecadar seus tributos, notadamente os impostos, indubitavelmente o mesmo pode ser responsabilizado, já que o cumprimento dos deveres legais, e dos deveres gestão em potencializar os interesses de desenvolvimento e de construção de uma sociedade solidária no Município (art.3º da Carta Magna) não estão sob sua discrição para cumprimento ou não (é dever jurídico promover o desenvolvimento social, nos termos da constituição).

Desta forma, devem sim as Corte de Contas em sede de emissão de parecer prévio em contas anuais analisar esta questão e valorar o esforço arrecadatório da gestão analisada, verificando, dentre outros aspectos, se todos os tributos foram implementados, se há código tributário organizado, se há estrutura de fiscalização e cobrança, se a arrecadação tributária está em consonância com o potencial econômico do Município, entre outros aspectos.

E verificando-se que não há o esforço arrecadatório devido, que o gestor não se desincumbiu de sua missão de fomentar a arrecadação tributária (e que mesmo encontrando dificuldades, não envidou as providências de superação), há de se valorar negativamente as contas anuais respectivas (podendo-se chegar, no limite, ao parecer prévio de rejeição); sem prejuízo de ações de controle, como recomendações e determinações para que a cobrança tributária seja regularizada.

Sendo certo, por fim, que as recomendações e determinações do Tribunal de Contas são da maior relevância, não só para monitoramento e solução do problema, mas também para demonstrar o eventual dolo de gestão, em sede de improbidade administrativa. Isto porque, após as recentes alterações legislativas, há que se demonstrar o dolo também em todas as ações de improbidade que resultem em danos ao erário, inclusive quanto à ilicitude da arrecadação tributária. E, neste ponto, ao menos de modo perfunctório, entendo que, no caso de o gestor que insistir em não arrecadar tributos, em contraponto à LRF e às leis locais, e em confronto a determinação específica do Tribunal de Contas, que asseverou a possibilidade e o potencial arrecadatório; tal conduta pode, em tese, configurar ato doloso de improbidade.

Mas voltando a Indiana Jones, e a busca do Santo Graal, a emissão de parecer prévio com recomendações/determinações talvez não seja a única forma de as Cortes de Contas e Ministérios Públicos de Contas colaborarem com um aperfeiçoamento da arrecadação tributária. Talvez haja outro caminho que tenha por base uma atividade mais pedagógica, colaborativa e indutora dos órgãos de controle. Expliquemos, porém, antes aclarando a remissão a nosso herói em nosso texto.

Realmente, em uma das etapas para chegar ao Graal, Jones necessitou transpor a visão de um abismo, em que não seria possível humanamente pular. Não havia pontes, nem nada e ele precisava chegar ao outro lado. Neste momento, ele, elucidando as pistas, percebeu que precisaria dar um salto de fé. Confiar que era possível sobreviver ao pulo e que tudo cuidadosamente estudado até ali, indicava que daria certo. Então ele dá um salto de fé por acreditar em todos os estudos demonstrando que aquele era o caminho. E deu certo, pois em vez de um abismo, havia uma ponte invisível que levava ao outro lado e ao Graal.

Mas sim, pergunta a leitora e o leitor atentos: - o que isto tem relação com nosso caso? É sempre para fechar os olhos e pular no abismo? Claro que não. O que quero dizer é que, muitas vezes não conseguimos enxergar que determinadas encruzilhadas de escolhas difíceis, mesmo que de forma não óbvia, nos levam a um caminho virtuoso e alvissareiro. No caso específico da arrecadação tributária, não tenho dúvidas de que, bem implementada, e de acordo com parâmetros técnicos corretos, uma cobrança de tributos bem-feita pode levar o Município a outro patamar de desenvolvimento social e econômico para sua população.

Isto porque, a uma, não há possibilidade de desenvolvimento e efetividade de gestão sem adequação ao compliance normativo. Não há como prosperar fazendo uso da informalidade. Neste sentido, os Municípios que se atentam a patamares regulares de gestão, estimulando a formalização da economia e de suas empresas, conhecendo e cadastrando seus contribuintes, inclusive as pessoas físicas; estes entes abrem o portal para um outro nível de desenvolvimento municipal, onde financiamentos, participação em licitações, e maior alcance e visibilidade econômica são possíveis.

Sem falar, a duas, que o próprio investimento, seja público ou privado, demanda um ambiente propício à implementação de negócios. Neste sentido, incentivo à educação, criando possibilidades de mão-de-obra; cuidado com o meio-ambiente já que há uma cultura de desincentivo e desconforto de aplicar recursos em pessoas e lugares que não cuidam do ecossistema (e aí, além da óbvia razão da dignidade humana, mais uma excelente razão para acabar com os lixões); e, como dito aqui, estruturação de uma legislação tributária proporcional e que traga segurança jurídica, são essenciais para os investidores.

Além disso, a três, a arrecadação tributária é um elemento de justiça fiscal e social, pois, sendo justa e eficiente, gera um leque de possibilidades de redistribuição de renda, e investimentos para a redução das desigualdades. Neste ponto, mesmo em um Município mais pobre, há indivíduos e empresas com capacidade econômica, que contribuirão com seus tributos, para que a gestão pública tenha recursos para atender os mais vulneráveis, que devem ser e ter a absoluta prioridade em qualquer ação de política pública municipal.

Desta forma, o que parece um grande abismo para os gestores, em termos de medo de rejeição social e perda de capital político, pode ser exatamente um caminho de governança para que o Município saía do seu ciclo de estagnação. Notadamente aqueles Municípios que, no limite, praticamente sobrevivem de transferências e que não têm capacidade de investimentos; sendo meros repassadores de valores de folhas de pagamento e intermediários para a execução de programas federais. Não tendo recursos suficientes para efetivar políticas públicas emancipatórias e condutoras de esperança e inclusão às populações mais vulneráveis.

E, neste contexto, entendemos que Cortes de Contas e Ministérios Públicos de Contas podem sim ser agentes de transformação deste efetivo receio de implementação de ações para um outro patamar de desenvolvimento social e governança tributária. Podendo isto ser feito, por diversos instrumentos: audiências públicas, eventos de esclarecimento, demonstração de cases de sucesso, termos de ajustamento de gestão, as recomendações e determinações já ventiladas, e mesmo resoluções estipulando patamares mínimos de estrutura de arrecadação.

Em frase atribuída a Einstein, “Insanidade é continuar fazendo a mesma coisa e esperar obter resultados diferentes”. Se o atual nível de governança na área tributária (ou na área de educação ou na área ambiental, entre outras) leva a um patamar insuficiente de arrecadação que retroalimenta uma estagnação em termos de investimentos e políticas públicas, temos que ter a coragem de propiciar um salto de fé que mobilize o Município a um outro patamar de gestão e arrecadação.

E acredito que as Cortes de Contas e os Ministérios Públicos de Contas possam ser estes faróis a iluminar, das mais diversas maneiras as decisões de administração pública, criando alternativas de caminhos a este túnel de gestão atual, que, mais das vezes, somente tem levado a este conhecido e repetido enredo de paralisia no tempo, ineficiência e reprodução de desigualdades. Enfim, tudo o que as ações de controle devem e precisam ajudar a transformar.

João Augusto Bandeira de Mello, advogado e procurador-geral do Ministério Público de Contas do Estado de Sergipe

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